Maria Clara Lucchetti Bingemer
Passou o primeiro turno das eleições, mas não a perplexidade. Esta, ao contrário, aumentou. Por quê? Primeiro, por causa dos resultados que não corresponderam ao que as pesquisas permitiam esperar. Também, e talvez mais ainda, pelo inesperado rumo que tomaram as eleições para os governos estaduais, o Senado e boa parte do Congresso. A configuração do Legislativo mudou profundamente e com ela a configuração política e governamental do Brasil. Mesmo que o resultado do segundo turno corresponda às expectativas como se espera e deseja, dificilmente o país pode esperar tempos tranquilos no que toca a sua governabilidade.
Em seguida está a percepção de um elemento já fortemente presente nas eleições passadas, nas quais foi protagonista e influente nos resultados: a religião. Enquanto tentamos nos recuperar das surpresas, a influência da religião nos resultados das urnas, que nos atropelou e surpreendeu em 2018, volta a estar presente. O protagonismo que a religião continua a ter nas campanhas de tantos candidatos segue sendo digno de nota. O discurso sobre Deus, a compreensão da própria candidatura como vocação dada por Deus, a Bíblia utilizada como epígrafe de entrevistas transmitidas pela mídia se fazem sempre mais presentes na propaganda eleitoral e nos debates entre os candidatos.
Não se trata – e nisso se reproduz o que aconteceu nas eleições passadas – do discurso cristão característico das Igrejas históricas, católica ou protestante. A ênfase é na afirmação da supremacia gloriosa de Deus sobre tudo e todos e a conexão disto com o patriotismo exacerbado: a pátria acima de tudo. Além disso, as profissões de fé religiosas vêm acompanhadas de uma moral rígida e restrita que pretende falar em nome da religião. Os versículos bíblicos – às vezes não citados corretamente – são isolados de seu contexto e justificam preconceitos, falsas acusações, “fake news” e calúnias .
Se Deus está acima de todos, não parece estar acima daqueles que o citam a torto e a direito, em perigosa proximidade com o segundo mandamento que manda “não tomar seu Santo nome em vão”. Servem tais citações como respaldo e legitimação ao que os candidatos em questão querem propor ao público como ideias a assimilar e projetos aos quais aderir. E também para deslegitimar e denegrir as propostas dos candidatos adversários. É a Bíblia a serviço do discurso eleitoral e não o contrário. É a Palavra de Deus utilizada como apoio para afirmações e declarações que andam distantes daquilo que as Escrituras apresentam como sendo o permanente diálogo de amor e vida em plenitude do Deus da Aliança e da Promessa com seu povo.
Nessas declarações encontram-se incitações à violência e afirmações sobre a necessidade de armar a população e militarizar as escolas. Ouvem-se afirmações discriminatórias em relação a vários segmentos da população: merecem destaque os negros, as mulheres e os LGBTQIA+. Fala-se com desprezo dos direitos humanos e das conquistas duramente conseguidas pela humanidade e concretamente pelos brasileiros ao longo de décadas. Direitos laborais, políticos e sociais são definidos como males a extirpar.
Percebe-se, portanto, uma explicitação da fé cristã descolada dos valores que os candidatos em questão pretendem defender: a família, a moral, a segurança. Enquanto no Evangelho de Jesus Cristo o que se lê é a apologia do acolhimento ao outro, do perdão, da não violência, da inclusão de todos, os discursos políticos dessas eleições em nosso país vêm carregados de agressividade, eu diria até mesmo de morbosidade. Agora, quatro anos depois, trazem consigo concreções que a população pôde presenciar e sofrer como o negacionismo, o ataque à ciência, o desprezo pelo avanço da pandemia. As posições se acirram e a discórdia cresce até mesmo entre amigos e familiares.
A ligação constitutiva do cristianismo entre a fé e o compromisso transformador com a justiça passa longe das atuais eleições brasileiras tal como nas que aconteceram há quatro anos. O que se vê é o louvor como fim em si mesmo, a afirmação da fé em Deus apoiando e legitimando propostas excludentes, agressivas e discriminatórias. E, pior que tudo, a banalização da violência e da morte como preço necessário a pagar para trazer segurança a um povo cansado de ver a própria vida e de sua família permanentemente em risco.
Essa combinação explosiva de patriotismo ultramontano e religiosidade fundamentalista infelizmente não é nova. Já foi vista em outras situações e mais ou menos recentemente na Europa do final dos anos 30, inicio dos 40. O espaço onde aconteceu foram os países cristãos. Ali também Deus foi convocado para justificar um novo regime que parecia empoderar países em crise. Os resultados são bem conhecidos. A humanidade amargou o maior genocídio de todos os tempos, pelo qual até hoje paga as consequências.
Ninguém acreditava que líderes que se diziam tementes a Deus pudessem realizar suas enlouquecidas propostas. A história demonstrou que sim, e as pessoas se deram conta quando já era tarde. Às vésperas do segundo turno, acompanhamos com angústia o rumo que toma nosso país. Que nos ajude a esperança, virtude indispensável que a fé no verdadeiro Deus ajuda a não perder.
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de “Experiência de Deus na Contemporaneidade: entre o viver e o contar” (Editora Paulinas), entre outros livros.