Um testemunho que anima, questiona e ilumina a Vida Religiosa Consagrada
Ir. Rafael Ferreira Júnior, FMS[1]
No dia 8 de dezembro, festa da Imaculada Conceição de Maria, a Igreja Católica, particularmente aquela que está na Argélia, África, viverá uma significativa experiência com a beatificação de Pierre Claverie, bispo, e 18 Companheiros Mártires. Esse acontecimento nos tocará de um modo muito especial, uma vez que todos os mártires beatificados pertencem à Vida Religiosa Consagrada.
Das oito famílias religiosas das quais provêm estes mártires, seis estão presentes no Brasil: Cistercienses (trapistas), Dominicanos, Maristas, Missionárias Agostinianas, Irmãzinhas da Assunção e Padres Brancos.
Quando, entre os anos de 1991 e 2002, uma violenta guerra civil assolou a Argélia, então uma jovem democracia, milhares de pessoas foram vitimadas. É nesse período que esses 19 missionários cristãos são violentamente assassinados. Os primeiros foram o Irmão Henri Vergès, marista, e a Irmã Paul-Hélène, Irmãzinha da Assunção, em maio de 1994. Ambos foram assassinados em seu posto de trabalho, na biblioteca do bairro Casbah, em Argel, onde atendiam mais de mil jovens estudantes do Liceu. O G.I.A. (Grupo Islâmico Armado) reclamou para si a autoria do atentado. Mais tarde outros assassinatos ocorreram em diferentes partes do país, vitimando outros religiosos, entre os quais os sete monges Cistercienses de Tibhirine, que são os mais conhecidos deste grupo, já que sua impressionante saga chegou às telas do cinema, retratada por Xavier Beauvois (Homens e Deuses, 2010). O último assassinato foi o do bispo de Oran, o dominicano Pierre Claverie, em 1996.
Todos sabiam da gravidade do conflito fratricida que castigava o povo argelino e tinham consciência dos riscos que corriam, como estrangeiros e cristãos, ao permanecer na Argélia. Por isso, quando os conflitos recrudesceram, várias embaixadas recomendaram aos cidadãos de seus países que deixassem o quanto antes o território argelino. Já o arcebispo de Argel, Henri Teissier, aconselhou às comunidades religiosas estabelecidas na cidade que fizessem um discernimento para que cada um dos missionários escolhesse livremente sua permanência ou imediata partida do país. Contudo, mesmo podendo partir, a maioria deles optou por permanecer na Argélia.
Certamente os religiosos e religiosas temiam por sua segurança, por seu futuro, mas não a ponto de perder a paz interior. “Isso (a morte) faz parte do contrato, e isso será quando Ele quiser. Não será isso que nos impedirá de viver, do mesmo modo!”, dizia, sereno, o Ir. Henri. Como aprenderam de Jesus, sabiam que o amor tem força irresistível e é capaz de vencer barreiras, mesmo as aparentemente intransponíveis. Esta era sua fé, tão bem expressa pelo bispo Claverie quando, certa vez, se perguntou: “o que é mais louco do que ir ao encontro da morte sem nenhum outro equipamento do que um amor desarmado e desarmante que morre perdoando?”
O martírio é um fenômeno que marcou muito profundamente as origens do Cristianismo. É preciso recordar, contudo, que a perseguição aos cristãos não é um fenômeno restrito aos primeiros séculos de sua existência, como, talvez, estejamos habituados a ver nos livros de História. Tampouco restringe-se às ações persecutórias do Império Romano contra os cristãos. Em todos os tempos, desde há dois mil anos, e sob os mais variados regimes políticos, os cristãos têm sofrido perseguições violentas, como restrição de liberdade de culto, negação de direitos civis, constrangimento pela forma de pensar e pela ética que praticam, e não poucos têm pagado com a própria vida o delito de sua fé em Jesus.
O século XX foi, surpreendentemente, o tempo em que mais se perseguiram e se assassinaram cristãos devido à sua fé. Nesse século, a perseguição aos cristãos foi sistemática, abrangente e devastadora. Ainda hoje os seguidores de Jesus são os mais perseguidos do mundo por razões de fé. Como Ele mesmo disse “se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro, me odiou a mim” (cf. Jo 15,18).
Esta assombrosa realidade, no tocante aos religiosos, foi evidenciada por João Paulo II, em Vita Consecrata, 86, quando afirmou que neste século, como em outras épocas da história, homens e mulheres consagrados testemunharam Cristo Senhor com o dom da própria vida. Contam-se aos milhares aqueles que, escorraçados para as catacumbas pela perseguição de regimes totalitários ou grupos violentos, hostilizados na atividade missionária, na ação em favor dos pobres, na assistência aos doentes e marginalizados, viveram, e vivem, a sua consagração num sofrimento prolongado e heroico, chegando muitas vezes até ao derramamento do próprio sangue, plenamente configurados com o Senhor Crucificado.
A Argélia conseguiu sua independência do domínio francês somente em 1962, depois de uma guerra de quase oito anos. Desde então iniciou-se um progressivo êxodo de cristãos, quase todos europeus, que se sentiam ameaçados em meio à instabilidade política do país. A comunidade cristã, contudo, mesmo sensivelmente diminuída, perseverou em seu caminhar e, como um “pequeno resto”, estabilizou-se em meio majoritariamente muçulmano. Seu grande líder nesse período foi o valente cardeal Léon-Etienne Duval.
Os cristãos argelinos, mesmo depois da independência do país, continuaram acreditando na coabitação pacífica e solidária entre cristãos e muçulmanos. Assim sendo, salvo em períodos de acirrados conflitos bélicos, sentiam-se seguros e à vontade em meio islâmico, já que estavam bem integrados à sociedade e cultura locais.
Particularmente para as religiosas e os religiosos – missionários/as na Argélia – o Islã e seus seguidores não eram uma ameaça. Ao contrário. Por enxergarem grande beleza no islamismo e por respeitarem seus seguidores, entre os quais se moviam sem ganância proselitista, mas unicamente motivados pelo desejo de servir a quem deles precisasse, eram amados pela gente simples, sobretudo os pobres com quem compartilhavam o que tinham e o que eram.
Henri Vergès e Christian de Chergé, por exemplo, participavam do Ribat, um grupo de estudo, reflexão e oração entre cristãos e muçulmanos. Neste espaço de diálogo e mútua ajuda foram amadurecendo, ano após ano, sua compreensão do Islã. A Vida Religiosa Consagrada, por meio desses irmãos de coração universal, se tornou ponte entre pessoas de crenças diferentes, fazendo-as entender que buscavam o mesmo Deus, ainda que por caminhos distintos.
O testamento de Christian, que se tornou célebre, registra sua visão clara, lúcida e desprovida de preconceito em relação aos argelinos e ao Islã:
Sei bem o desprezo com o qual se chegou a estigmatizar os argelinos, globalmente considerados. Conheço também as caricaturas do Islã que um certo islamismo encoraja. É demasiado fácil ficar-se com a consciência em paz identificando esta religião com os integralismos dos seus extremistas”[2]
Jesus disse certa vez que “não se acende uma luz para deixá-la escondida”. A luz, que tem como vocação essencial iluminar o que está em trevas, “deve ser posta em lugar visível” para que cumpra sua função (cf. Lc 8, 16). Para a Igreja, os homens e mulheres-luzes iluminam melhor a partir do altar, seja o do culto, seja o do coração humano. É, pois, do altar que melhor podem clarear as estradas daqueles que procuram guias seguros para seu peregrinar num mundo que nem sempre prefere a luz às trevas.
A beatificação com que serão honrados esses 19 mártires argelinos lança luzes sobre suas vidas, fazendo emergir da sombra do anonimato um testemunho coerente e vigoroso, sobretudo o profetismo de fronteira que haviam assumido em terras africanas. Quando a morte os surpreendeu, eles estavam em seus postos de trabalho, realizando o melhor que podiam a missão cotidiana. Aí santificavam-se, dia após dia, dando a vida gota a gota, e ainda assim dispostos a entregá-la inteiramente, definitivamente e irreversivelmente se o compromisso assumido lhes exigisse isso.
É como diz o papa Francisco, na Gaudete et Exultate nº 5,
nos processos de beatificação e canonização, levam-se em consideração os sinais de heroicidade na prática das virtudes, o sacrifício da vida no martírio e também os casos em que se verificou um oferecimento da própria vida pelos outros, mantido até a morte. Esta doação manifesta uma imitação exemplar de Cristo, e é digna da admiração dos fiéis.
É bem provável que, se não fosse pela beatificação em breve celebrada, um número bem menor de pessoas teria oportunidade de conhecer estas vidas santas e admiráveis. Estes mártires, assim como Maria de Nazaré, são exemplo do que o Senhor pode fazer em seus discípulos quando se põem em suas mãos com infinita confiança. Porque “sem mim, nada podeis fazer” (c. Jo 15,5), porém, “eu os chamei para que deem frutos” (cf. Jo 15,16).
Concluímos este informe apresentando os nomes dos 19 bem-aventurados mártires argelinos e suas respectivas nacionalidades e famílias religiosas. E o fazemos evocando a experiência apocalíptica de João, quando, numa de suas visões, contemplou “uma multidão, a qual ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, que estavam diante do trono e perante o Cordeiro, trajando vestes brancas e com palmas nas suas mãos”. Pierre Claverie e seus Companheiros e Companheiras, em breve associados a essa grande multidão, também “proclamam, em alta voz, que a salvação pertence ao nosso Deus, que está assentado no trono, e ao Cordeiro!” (cf. Ap 7).
Irmão Henri Vergès, religioso marista, e a Irmã Paul-Hélène Saint-Raymond, religiosa das Irmãzinhas da Assunção, ambos franceses. Irmã Esther Paniagua Alonso e Irmã Caridad Alvarez Martin, espanholas, Agostinianas Missionárias. Padres Jean Chevillard, Alain Dieulangard, Christian Chessel, franceses, e Charles Deckers, belga, dos Padres Brancos. Irmã Angèle-Marie Littlejohn, tunisiana, e Irmã Bibiane Leclercq, francesa, das Irmãs Missionárias de Nossa Senhora dos Apóstolos. Irmã Odette Prévost, das Pequenas Irmãs do Sagrado Coração, francesa. Irmãos Christian de Chergé, Luc Dochier, Christophe Lebreton, Michel Fleury, Bruno Lemarchand, Célestin Ringeard e Paul Favre-Miville, monges Cistercienses, franceses. Dom Pierre Claverie, argelino, dominicano, bispo de Oran.
Coerência é não só recolher suas relíquias e erigir-lhes monumentos, mas imitá-los, assumir sua radicalidade, sua atitude de testemunhas, as razões de sua vida e de suas opções e fazer frutificar seu sangue com obras de vida que prolonguem até a eternidade. Desse modo podemos provar que não esperaram nem morreram em vão[3]
Em seus mártires e em seus santos, a Igreja e a Vida Religiosa Consagrada continuam vivas. Que o Deus misericordioso as conserve fieis a Jesus, martirizado e ressuscitado, e também àqueles pelos quais o mártir Jesus deu, espontaneamente, a própria vida (cf. Jo 10,18). Amém. Inshallah.
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[1] Diretor do Centro de Estudos Maristas; formador do Juniorato; graduado em História e Teologia, com especialização em Teologia da Vida Consagrada. Publicaçoes: Coleção Simplesmente Irmãos (autobiografias vocacionais de Irmãos Maristas). Endereço: Rua Francisco Bretas Bhering, 81 – Copacabana. CEP 31550-060 – BH – MG. E-mail: rafael@marista.edu.br
[2] RICCARDI, Andrea. O século do martírio: os extermínios colectivos e o martírio individual dos Cristãos do século XX. Quetezal Editores: Lisboa, Portugal, 2002, p. 298.
[3] ARBUÉS, Benito. Fidelidade à missão em situações de crises sociais. Roma: Instituto Marista, 1998, p. 68.