Vem aí o mês da Bíblia

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Frei Gilvander Moreira *

Vem aí o mês da Bíblia: setembro. Por que e para quê? Porque dia 30 de setembro é dia de Jerônimo (342-420), o tradutor da Bíblia para o latim, a Vulgata. Um dos pilares da patrística, Jerônimo colocou a Bíblia na linguagem do povo, o latim. E também porque, com a Opção pelos Pobres e a Dei Verbum, um dos ótimos Documentos do Concílio Vaticano II, a leitura da Bíblia a partir dos pobres, de forma comunitária, militante, (macro)ecumênica e transformadora, foi incentivada e vem sendo feita há cinquenta anos. Inicialmente com Dia da Bíblia e sucessivamente, Tríduo Bíblico, Semana Bíblica e, assim, pouco a pouco, setembro se tornou o Mês da Bíblia. Em 2021, a Carta do apóstolo Paulo aos Gálatas foi o livro bíblico escolhido para iluminar nossa caminhada no mês da Bíblia.

“Não esqueçam os pobres!” (Gl 2,10) e “sejam livres!” (Gl 5,13), eis duas colunas mestras imprescindíveis na Carta do apóstolo Paulo aos cristãos e cristãs da região da Galácia: Gálatas. A utopia é construir uma sociedade de pessoas livres e libertadas e a condição é cuidar bem dos pobres e defendê-los de toda e qualquer relação social que cause empobrecimento.

Assim como Jesus não nasceu Cristo, mas tornou-se Cristo, o apóstolo Paulo não nasceu discípulo de Jesus Cristo e do seu Evangelho. Aliás, Paulo nasceu Saulo, se tornou perseguidor de cristãos antes de se converter ao Evangelho de Jesus Cristo e se tornar um dos melhores e maiores apóstolos no meio das primeiras comunidades cristãs. Após estudar muito e se tornar um intelectual orgânico na convivência com o povo escravizado, fora da Palestina, Paulo passou por um profundo processo de adesão ao Evangelho de Jesus Cristo, que durou muito tempo, enfrentou ‘noites escuras’ e desertos – “foi para a Arábia” (Gl 1,17) -, muita incompreensão, perseguição e, por fim, foi martirizado – segundo a Tradição da Igreja -, identificando-se radicalmente com Jesus Cristo – “não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim” (Gl 2,20) -, condenado à pena de morte pelos podres poderes da religião institucional, da política imperial e de um modelo econômico escravocrata. Ao longo da vida, Paulo se transfigura de judeu perseguidor contumaz das comunidades cristãs a apaixonado missionário de Jesus Cristo e do seu Evangelho. Paulo se descobriu chamado por Deus, “nosso Pai”, desde o ventre materno (Gl 1,15), assim como o profeta Jeremias e outros profetas e profetisas. Ele descobriu a vocação de ser ‘apóstolos dos gentios’, considerados pagãos (Gl 1,16). Paulo aprendeu a amar radicalmente as pessoas das comunidades fundadas ou animadas por ele como a mãe que, por amor, enfrenta as dores de parto, pois sabe que gerará um/a filho/a muito amado/a: “Meus filhos, sofro novamente como dores de parto, até que Cristo esteja formado em vocês” (Gl 4,19).

Inserida no Segundo Testamento após a Carta aos Romanos, a 1ª e 2ª Carta aos Coríntios, a Carta aos Gálatas, com seis capítulos, não é menos importante e nem menos eloquente que nenhuma outra carta paulina. Endereçada não apenas a uma comunidade, mas a várias, Gálatas foi escrita por um Paulo profundamente indignado e irado diante das calúnias e ataques que “intrusos, falsos irmãos” (Gl 2,4) lhe desferiam pelas costas no meio das comunidades da região da Galácia, alegando que ele não era Apóstolo, que inclusive os não-judeus deveriam se circuncidar e cumprir a Lei judaica, como condição para participar das comunidades cristãs. Essas acusações e questionamentos ao seu Evangelho anunciado não afetavam apenas Paulo, mas caso não fossem desmascarados, podiam implodir as comunidades cristãs que se inspiravam no ensinamento e testemunho de Paulo.

Em contexto de diversas tendências na evangelização, que vinham desde a briga entre Paulo e Pedro em Antioquia (Gl 2,14) por causa do conflito com “falsos irmãos” (Gl 2,4), Gálatas é Carta de resistência e de luta contra os ataques que afetavam as bases da vida em comunidade e da luta pela superação de relações sociais escravocratas e busca conquistar condições objetivas que viabilizem a construção de relações sociais de liberdade, de equidade e de respeito à dignidade da pessoa humana.

A Carta aos Gálatas nos convida à superação de uma vida cristã fundamentalista – ritualista, espiritualista, moralista, religião do consolo e da autoajuda – e conclama-nos ao compromisso radical com o Evangelho de Jesus e a causa de todos/as escravizados/as da história, o que exige abraçarmos pelo nosso modo de vida um estilo simples e austero, opção de classe e batalhar ao lado dos/as empobrecidos/as na luta pela conquista de seus direitos: terra, teto, trabalho com salário justo, meio ambiental sustentável e superação de todos os preconceitos e discriminações.

Paulo reivindica sua condição de apóstolo na controvérsia com os “falsos irmãos”, ao travar um debate “intracristão”. Em Gálatas, Paulo não está defendendo o Evangelho de Jesus Cristo diante de judeus, seguidores do judaísmo, mas está indignado com “falsos irmãos” que se dizem também seguidores de Jesus Cristo. Paulo se sentia Apóstolo autorizado diretamente por Jesus Cristo e por Deus, que ele compreendia como “nosso Pai” (Gl 1,3) e como quem ressuscitou Jesus Cristo (Gl 1,1), que é o “Senhor” de nossas vidas. Afirmar Jesus Cristo como Senhor (Kyrios, em grego) é algo tremendamente subversivo e revolucionário, pois “Senhor’ no Império Romano era o imperador divinizado. Sustentar que ‘senhor de nossas vidas’ é Jesus Cristo, aquele fora da lei, transgressor e subversivo condenado à morte pela pena mais execrável, a crucifixão, era ‘cutucar com vara curta’ o divinizado imperador romano e assumir o risco de sofrer a mesma condenação do galileu Jesus.

Paulo é elo vivo de um movimento comunitário de resistência: “eu e todos os irmãos que estão comigo” (Gl 1,2) são os autores da Carta aos Gálatas. Segundo Paulo, Jesus não quis nos tirar do mundo, mas “do mundo mau” (Gl 1,4), ou seja, de um mundo com relações sociais escravocratas e alienadoras. Paulo abomina a ideia de “vários evangelhos” (Gl 1,6-7), como se fosse possível moldar o Evangelho de Jesus Cristo segundo interesses de classe e domesticá-lo para justificar posturas hipócritas e cúmplices de relações sociais de opressão.

As comunidades cristãs não podem se reduzir a um grande guarda-chuva que abriga “gregos e troianos”, opressores e oprimidos, cada um/a com o tipo de religiosidade que lhe agrada. Esse relativismo é fulminado pelo apóstolo Paulo. De forma enfática, ele afirma: ‘Não existe outro Evangelho” (Gl 1,7), além do de Jesus Cristo, revelado a ele nas entranhas das relações humanas conflituosas (Gl 1,12). “Maldito quem anunciar a vocês um evangelho diferente do que anunciamos” (Gl 1,8-9). Paulo faz perguntas inquietantes: “Busco aprovação dos homens ou de Deus? Procuro agradar aos homens?” (Gl 1,10). É claro que aqui Paulo não se refere a todo e qualquer homem, toda e qualquer pessoa humana, mas certamente não busca a aprovação dos homens de poder, dos que sustentam e reproduzem relações sociais escravocratas. Paulo também não aceita adocicar o Evangelho de Jesus Cristo para “agradar aos homens”, seja os que estão no poder, seja o povão alienado e escravizado. Levemos a sério a exortação do apóstolo Paulo aos Gálatas: “Não esqueçam os pobres!” (Gl 2,10) e “sejam livres!” (Gl 5,13).

*Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte (MG).

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