Não é difícil imaginar a cena. Após a agonia do Getsêmani e a última ceia com os amigos mais íntimos, Jesus acaba de ser preso. Segue-se o processo de um julgamento duvidoso, realizado em várias etapas. Do lado de fora, alguns os curiosos, os soldados e servos se aquecem ao redor de uma fogueira. Um dos presentes aponta o dedo na direção de Pedro: “você também é um galileu, fala como ele”! Pedro nega. Pouco depois, outra pessoa o acusa novamente: “você o conhece, andava com o grupo dele”! Pedro nega pela segunda vez. Enfim uma empregada reconhece o seguidor do prisioneiro e repete: “sim, você é um amigo dele”! Pela terceira vez, Pedro nega. Então o galo canta… E o discípulo recorda o que lhe havia dito o Mestre: “antes que o galo cante, você me negará por três vezes”!
No mesmo instante, uma porta se abre. De mãos atadas e vigiado pelos guardas, aparece o próprio Jesus. Os olhos do prisioneiro se cruzam com os olhos de Pedro. A luz transparente e penetrante do olhar do Mestre cai como um raio sobre a figura do discípulo. A luminosidade indescritível do primeiro fulmina o coração em trevas do segundo. O perdão e a misericórdia infinita de um estendem a mão ao amargo arrependimento do outro. De fato, este último, de acordo com as palavras do evangelista, “saiu para fora e chorou amargamente”. Enquanto Jesus se dirige para a tortura, o patíbulo e a morte ignominiosa da cruz, Pedro destila em sua mente e em sua alma o veneno indigesto da culpa, da vergonha e do remorso.
Também não é difícil imaginar que a agonia de Jesus na crucifixão e morte será acompanhada pela agonia de Pedro. Enquanto um é julgado em praça pública e condenado pelas autoridades e multidões, o outro sente-se julgado pelo pior dos juízes que é a consciência. E deve tragar até a última gota o fel de uma negação que ainda lhe queima a boca e os lábios. Se no sábado santo um silêncio tenebroso se abate sobre o projeto do Reino de Deus como centro da mensagem do Mestre, abater-se-á de igual forma sobre a existência do discípulo. É como se o líder Pedro personificasse a noite escura de toda a humanidade que acaba de silenciar o próprio Filho de Deus. É pesada a cruz das acusações e das blasfêmias, dos pecados e da violência humana sobre os ombros de Jesus, no caminho doloroso do calvário. E é grande também o fardo de Pedro ao sentir-se um dos responsáveis tão próximos da tragédia.
O canto do galo e o olhar de Jesus permanecerão gravados na memória de Pedro com caracteres de fogo. Não há lugar onde possa esconder-se do dedo em riste desse tribunal implacável. Passa a errar pelas ruas e becos de Jerusalém, perdido como um condenado a quem lhe recusaram até mesmo uma sentença propiciatória. Encontra-se só, absolutamente só, diante do crime de ter negado o Mestre na hora mais crítica e decisiva. Entretanto, se por um lado o canto do galo o persegue como um criminoso abominável e fugitivo, por outro o olhar compassivo de Jesus reveste sua nudez exposta. O amor, o perdão e a misericórdia infinita contrastam vivamente com a acusação. Contraste incomensurável! Tomado de perplexidade, Pedro se vê dividido entre o juiz que o envia ao inferno e o Nazareno que o quer reconduzir ao céu.
Essa noite memorável – negação, cato do galo e olhar do Mestre – haverá de significar na vida do apóstolo Pedro um espelho que jamais o abandonará. Espelho através do qual poderá avaliar as ações e atitudes, orientando seus projetos e passos de acordo com os ensinamentos de Jesus. Tendo experimentado na própria pele e nas entranhas a fragilidade e a fraqueza da condição humana, encontra-se mais preparado para entender a debilidade de seus irmãos. Numa palavra, encontra-se preparado para receber a graça do Espírito Santo por ocasião do Pentecostes. Depois de passar pelo “fundo do poço”, está preparado para voar às alturas do paraíso. Por isso mesmo, no encontro com o Ressuscitado, após ser submetido a uma tríplice prova – numa espécie de paralelo curioso com a tríplice negação – será reconfirmado pelo Mestre como líder dos demais apóstolos e da Igreja embrionária: “apascenta minhas ovelhas”!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 22 de julho de 2020