Fragmentos de espiritualidade em tempos de pandemia (II)

Compartilhe nas redes sociais

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no telegram
Telegram

Os tempos modernos, entre outras coisas, caracterizam-se pela velocidade, pelos ruídos, pelo consumo e pelo descarte fácil. A relação com as coisas e com as pessoas são dominadas pela pressa. As agendas e atividades, não raro, superam o espaço de que a natureza nos dispõe. Os meios de transporte, a Internet e a eletricidade aboliram o tempo e a noite. A prática de alguns supermercados e postos de gasolina – aberto 24h por dia – torna-se uma espécie de metáfora também para as ações dos seres humanos. Estamos permanentemente conectados, submetidos a um bombardeio estridente de notícias, publicidade e apelos. Semelhante correria, como não podia deixar de ser, dispersa e desgasta nossa atenção. A pandemia e a consequente quarentena, em pleno tempo da quaresma impõe a necessidade urgente de a) resgatar o núcleo da existência, b) cultivar a memória e a utopia e c) manter os olhos fixos no foco.

Resgatar o núcleo da existência. Qual o núcleo mais íntimo de cada um de nós? Qual o miolo de nossas preocupações e atividades diárias? Por que a pressa, a ansiedade e a busca? Vale iniciar com uma máxima: quando nos sentimos atropelados pela velocidade dos tempos que correm é sinal de que estamos à procura de nós mesmos. Não nos damos conta que, por vezes, o melhor de cada pessoa encontra-se na sua casa. Quantas pessoas deixam o lar, a família e a vizinhança na tentativa de encontrar o sentido oculto e misterioso de suas vidas! Os livros de Paulo Coelho, entre outros escritos contemporâneos, expressam bem esse enigma. Alguns personagens correm mundos e fundos atrás de uma razão para continuar a existência. Ao final de tantos caminhos tortuosos, de tantos labirintos desconhecidos e de tantos encontros – com frequência acabam por tropeçar no beco sem saída do desencontro.

Qual a conclusão? Depois de múltiplas andanças e adversidades, descobrem que o tesouro que tão desesperadamente buscam fora de casa, no retorno, o encontram juntos aos seus. Mais ou menos com a saga de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Após a desvairada travessia pelo mundo afora no vão esforço de concertar o que está errado, “o cavaleiro da triste figura”, na vigília da própria morte, descobre que no fundo era “um homem bom”. E ali, nas mãos dos familiares e amigos deposita o que tem de melhor: a bondade. Quantas energias gastamos em idas e vindas sem fim ao redor de nosso núcleo mais sagrado! A reclusão e o retiro desta quarentena forçada, justamente no decorrer do período quaresmal, certamente nos ajuda a partilhar com aqueles que habitam sob o mesmo teto o valor mais secreto de que dispomos, o qual, convém não esquecer, é sempre um dom de Deus no íntimo de nosso ser.

Mas não é só isso! Se, por um lado, o recolhimento pode servir para conhecer melhor a riqueza que trazemos em nossas entranhas, num profundo e progressivo autoconhecimento, de igual modo servirá para um conhecimento das pessoas que mais de perto convivem conosco. Quantas vezes, no corre-corre cotidiano, deixamos os familiares para encontrar os amigos, como se para “sentir-se em casa” fosse necessário deixar a proteção de suas paredes, piso e teto! Ou seja, quantos buscamos fora o que não encontramos dentro! A pandemia associada à quaresma nos oferece a oportunidade de descobrir, ao lado das pérolas que nós mesmos possuímos, o brilho e o calor dos valores que os demais carregam. Este confinamento pode ser “o tempo favorável” para o encontro recíproco com aqueles que, embora no dia-a-dia se esbarrem o tempo todo, jamais se encontram. Somente assim nossas casas deixam de ser meras pensões – onde cada qual entra e sai para comer e dormir – para se converterem em um verdadeiro lar.

Cultivar a memória e a utopia. A trajetória pessoal de cada um, com seus relacionamentos e suas experiências, representa um poço de recordações: nele há muita água que pode ser reaproveitada em tempos difíceis. Aliás, nesse poço individual coexistem água e sede, lições de sabedoria e lacunas de carência. Neste momento de recolhimento, pouca coisa pode entreter tanto quanto rever e reciclar a própria memória. Desta última será possível identificar experiências dolorosas que, apesar de tudo e às vezes contra toda esperança, encontraram solução. Constituem o céu estrelado e luminoso de nosso passado: pequenas luzes que nos ajudaram a vencer túneis de dor, sofrimento e escuridão. Também poderemos identificar, a partir dessas mesmas experiências, os anjos que nos ajudaram a sair do escuro e até do desespero. Retiro é momento de conversar com os anjos e relembrar as estrelas que até agora iluminaram nosso caminho. Temos aí um grande acúmulo de iluminações a serem resgatadas e recicladas, seja no sentido de enfrentar os embates do presente, seja na perspectiva de manter viva a esperança e a utopia do futuro.

Não podemos esquecer, por outro lado, que cada um de nós é, simultaneamente, uma mescla de água e sede. Nem só água, nem só sede; nem água o tempo todo, nem sede o tempo todo. Mas essa mistura alternada de água e sede, de lições aprendidas e de feridas abertas, de doação e carência. No conhecido episódio do encontro entre Jesus e a samaritana, à beira do poço de Jacó, capítulo quarto do Evangelho de João, água e sede se encontram. Melhor, dois tipos de água e dois tipos de sede: água e sede material e água e sede espiritual. Quem no início revela a própria sede, ao final oferece água viva; e quem no início vem buscar água com o balde, no final revela sua sede mais profunda e obtém salvação.

Cabe a pergunta: quem de fato evangeliza, Jesus ou a mulher? Ou não será o poço?! O poço é, na verdade, o lugar do encontro entre o finito e o infinito. É nele que água e sede se fundem numa paz serena e perpétua. Na prática do Mestre, verifica-se várias vezes a mesma estratégia: abrir poços, muitas vezes proibidos como este (pois ela é mulher, samaritana e pecadora), e deixar que o próprio poço oportunize a fusão de água e sede. Disso se conclui que o processo de evangelização tem sempre mão dupla: quem se diz evangelizador, acaba por ser também evangelizado; e quem se considera evangelizado, também se revela evangelizador. O poço/encontro é o lugar da abertura ao outro e do enriquecimento recíproco.

Manter os olhos fixos no foco. Foco se identifica com meta, com horizonte a ser alcançado. Facilmente o foco tende a se perder em meio às tormentas da existência. Fica sempre a lição de que quanto mais escura a noite, tanto maior o brilho das estrelas. De igual modo, embora os tempos sombrios possam nos tornar cegos e surdos, costumam clarear melhor os contornos da meta e dos valores inegociáveis. A pressão das dificuldades exige concentrar-se sobre o que é essencial. Na tempestade, a embarcação se desfaz de tudo que é secundário para salvar o que é indispensável. As nuvens sombrias e as ondas bravias nos obrigam a fixar os olhos no alvo, no foco, na meta, em detrimento do luxo supérfluo.

No meio do redemoinho e da encruzilhada, como mostra Guimarães Rosa em Grande sertão-veredas, surge o convite inesperado para repensar a trajetória e o objetivo a que nos propomos, bem como os meios e os fins a serem alcançados. Nesse momento, e em tais condições, seremos capazes de deixar de lado o que é descartável, para nos ocuparmos unicamente daquilo que é verdadeiro e absoluto. Quem sou, de onde vim, para onde vou, o que posso oferecer, do que necessito, que caminho seguir, com quem partilhar a os passos e os tropeços, para onde vai a história? – eis que emergem com força redobrada as perguntas fundamentais da existência, aquelas que apontam para o significado oculto e misterioso da vida humana.

Somos então catapultados da superfície das águas rasas, em que tranquilamente nos movíamos, para o subterrâneo das correntes profundas. De uma relativa indiferença, para um engajamento cheio de compromisso. No turbilhão dos ventos contrários, não há meio termo, é preciso tomar partido. E nesta altura impõe-se outra máxima: em terreno minado, recomenda-se não correr nem caminhar em linha reta. Toda travessia, efetivamente, tem seus reveses. Por vezes faz-se necessário parar, avaliar, silenciar e escolher qualquer atalho, uma vereda alternativa. Esta quarentena e o isolamento forçados, em meio à preparação para Festas da Páscoa, podem ser vistas com outros olhos, positivamente, como uma oportunidade para rever os valores centrais que nos podem levar ao horizonte fixado e almejado.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 26 de março de 2020

Publicações recentes