Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Quisera tomar emprestado o gênio de Noel Rosa, de Chico Buarque ou de Adoniran Barbosa para compor a letra de um samba contemporâneo sobre “conversa de botequim”. Evidente que o protagonista principal teria de ser Jair M. Bolsonaro. Seus rompantes e impulsos, impropérios e ofensas – de modo particular nas relações com os representantes da imprensa ou nos ataques aos opositores políticos – têm muito a ver com esse tipo de conversa. Espaço onde não há travas, não há freios, não há limites. Prevalecem os instintos, interesses e paixões. Palavras e carrancas, humores e gestos se alternam com extrema rapidez.
No terreno do botequim, de fato, como todo o respeito aos que o frequentam, as rédeas da conversação costumam andar soltas. O ambiente se presta à liberdade de dizer o que se pensa, sem medir as consequências. Em geral cada personagem fala o que lhe vem à cabeça – ou de preferência o que sequer passa pela razão! Cada um diz o que quer, ouvindo muitas vezes o que não se quer. O vapor do álcool contamina o teor da discussão e tudo se funde num clima etéreo. Neste calor do momento, se mesclam e se diluem as fronteiras entre o permitido e o proibido. A exemplo das larvas de um vulcão ativo, as falas sucedem-se repentinas e espontâneas, numa confusão indistinguível de fogo e fumaça: palavras sobre palavras, intempestivas, atropeladas, destituídas de argumentos. Nada soa tão estranho à atmosfera do botequim quanto a exigência atual do “politicamente correto”.
Aqui está uma característica da “nova política”. Governa-se não a partir de um escritório revestido de estantes, armários e livros sérios e sisudos, mas a partir da mesa ou do balcão do botequim. E por que não? Neste espaço desprovido de etiquetas, a discriminação, o preconceito e o racismo podem ganhar voos livres. A preocupação com os possíveis danos e estragos fica para depois. Enquanto os gabinetes oficiais pressupõem uma liturgia rigorosa de ritos e formas, o boteco dispensa tudo isso, em favor da meia-verdade e mesmo da mentira pura e simples. A verdade é que, quando as palavras são impressas em declarações ou decretos, e estes últimos compõem documentos gravados em pastas oficiais, torna-se difícil recuar.
Mais fácil e menos problemático é jogar palavras ao vento, quando se está numa roda de amigos que se juntam para uns tragos e uma troca de ideias. Aqui respira-se um ar ligeiro, jocoso e efêmero, o que permite soltar frases de duplo ou triplo efeito, tergiversar com o significado das afirmações, usar qualquer expressão mais picante e até se permitir o luxo de um palavrão mais ousado, para não mencionar o gesto de dar uma banana para esse bando de comunistas e esquerdistas. Não obstante o emaranhado de microfones, câmaras e holofotes (ou justamente por causa deles), tudo se presta a um momento de descontração. Em caso de vazamento, sempre fica de pé a possibilidade de alegar que se tratava de uma conversa informal, que Fulano usou uma frase extraída do contexto, e coisas desse gênero…
Isso explica a frequência com que, no modo de governar de Bolsonaro e de seus ministros, vão se multiplicando avanços e recuos, mandos e desmandos, contratações e exonerações, ditos e desditos, feitos e desfeitos. Como num jogo simulado de adivinhação, tudo se torna passível de interpretações diferentes ou contraditórias. Ou como num teste de resistência, retesa-se o arco até o limite para testar a reação dos opositores. O tom cínico de brincadeira e jocosidade dá margem a que sempre se possa rever a proposta. Tendo a proposta sido atirada como num ambiente de jogatina, onde ganhar ou perder está dentro das possibilidades, o ato de voltar atrás, de retroceder, faz parte de qualquer jogador que se presta. E assim tudo vira jogo e o jogo continua… pois, como diz o poeta e cantor Gonzaguinha, “a plateia ainda aplaude e ainda pede bis, a plateia só deseja ser feliz”.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, São Paulo, 11 de fevereiro de 2020