Por Rosinha Martins|23.8.2015| Por ocasião do encontro internacional das Missionárias Scalabrininas, que acontece até o dia 31 na cidade de Porto Alegre, o sacerdote jesuíta e escritor, padre Alfonso Carlos Palácio y Larraury, versou sobre a função da autoridade da Vida Religiosa Apostólica.
Para padre Carlos, a Vida Religiosa Apostólica tem, pelo seu próprio modo de vida (que é apostólico), uma dinâmica diferente daquela da Vida Monástica e Contemplativa; portanto, o modo de exercer autoridade entre elas é evidentemente diferente, embora a Vida Religiosa Apostólica viva ainda na dinâmica da Vida Monástica no que ser refere ao modo de exercer autoridade. Isso, segundo ele, requer uma mudança de paradigma que levará tempo. “A passagem da vida apostolica para o modelo monástico deixou marcas indeléveis que ainda não estão absorvidas e saradas também. Isso faz parte do processo que nós estamos vivendo”, afirmou.
Segundo Larraury, o aporte jurídico ainda é o elemento fundamental para a nomeação de lideranças, o que, para ele, é uma visão ultrapassada e que não responde mais. “Essa visão juridica é cada vez mais, claramente, uma visão unilateral e insuficiente, e ela só pode ser corrigida à medida que percebermos que a função da autoridade na Vida Religiosa Apostólica só pode ser o horizonte da missão, quer dizer, autoridade não é para mandar e exercer despoticamente e tomar decisões”, enfatiza.
Padre Carlos, o tema deste encontro é ‘Liderança como serviço’. Que caminhos o senhor pretende fazer nesta reflexão com as religiosas scalabrinianas?
Padre Carlos – Pretendo refletir, primeiro, sobre o lugar e a função da autoridade e do governo na Vida Religiosa apostólica, ou seja, que sentido tem essa estrutura e qual é a finalidade dela, antes de a gente pensar nas formas mais adequadas que deveria ter hoje essa função. A questão da liderança está relacionada com isso, evidentemente, mas é como uma variante do mesmo tema, porque é uma questão de metamorfose da linguagem, digamos assim, a linguagem vai se deslocando em diversos sentidos e assumindo expressões novas que tratam muitas vezes de responder a impasses que hoje se vive. Por exemplo, alguns anos atrás, se falava ou se deixou de falar de superior e superiora (vejo isso mais entre as Irmãs), e se falava em coordenadora, evitando certas expressões e, então, algo semelhante acontece com o termo liderança.
As congregações, hoje, tendem a uma troca da expressão de ‘Superiora’ para ‘liderança’, ‘coordenadora’. Faz sentido, tem algum resultado prático essa mudança de nomenclatura?
Padre Carlos – Hoje se fala mais em liderança que em superior ou superiora. Por quê? Não que a troca de nome resolva os problemas que existem, mas é porque se percebe que é um tipo de serviço que se precisa nesse momento da Vida Religiosa; é algo que não se encontra unicamente a partir de uma estrutura jurídica. Por exemplo, um líder não é algo que possa ser nomeado, não posso nomear um líder. Ou uma pessoa tem liderança ou não a tem. É um dom, uma coisa inata na pessoa. Posso nomear um superior, uma superiora, porque, juridicamente, quero dizer, por um ato juridico eu crio uma função para uma pessoa que não era isso antes, mas eu não posso fazer o mesmo com um líder.
O que pode significar para a Vida Consagrada, padre?
Padre Carlos – Isso significa que a Vida Religiosa e em geral, a sociedade, hoje estão carentes de líderes, isto é, pessoas capazes de apontar caminhos novos para o futuro, capazes de animar as pessoas, suscitar vontade de resolver os problemas e assim por diante. Neste sentido, também a Vida Religiosa vive neste contexto e experimenta esta necessidade.
Uma vez que liderança é um dom, os critérios para nomear alguém para essa função na Vida Consagrada não deveriam ser outros?
Padre Carlos – Claro. Com certeza. Porque, se eu escolho uma pessoa como liderança, é porque estou esperando que ela conduza o grupo numa certa direção que ela, como lider, é capaz de fazer. Coisa que não se dá, necessariamente, por um ato jurídico. Quando eu nomeio uma pessoa juridicamente como diretor ou diretora de um colégio, de uma obra, superior ou superiora de uma província, superior ou superiora de uma comunidade, esse ato jurídico dá à pessoa autoridade para tomar decisões, medidas, etc, mas não dá carisma de liderança. São coisas diferentes. É por isso que a liderança hoje em dia está muito em função do que se espera da Vida Religiosa ou do que seria o desejo e os caminhos pelos quais deveria enveredar a Vida Religiosa para o futuro. Para isso, a gente tem que escolher as pessoas. Se eu quero ter este tipo de líderes, isso não pode ser criado por um ato jurídico. Tenho que ver onde eles estão e captá-los para ver se são capazes, porque nem toda liderança tem o mesmo valor e a mesma orientação.
O senhor que dizer que existem lideranças negativas, destrutivas, é isso?
Padre Carlos – Há lideranças negativas, também, evidentemente. Uma pessoa, por exemplo, que tem capacidade de agrupar as pessoas, mas no sentido negativo, de criticar e destruir e não de construir; não de inventar o futuro, mas quase de voltar ao passado. Isso também pode acontecer e é outro tipo de liderança.
A Vida Consagrada parece viver uma crise no campo das lideranças, da autoridade. Um dos grandes desafios da vida em comum parece ser o de uma gestão mais participativa, horizontal, em detrimento do autoritarismo. O senhor concorda?
Padre Carlos – Sim. Nós estamos engatinhando. É uma mudança muito grande passar de um paradigma para outro. O paradigma que predominou na Vida Relgiosa até agora é o paradigma que eu chamaria JURÍDICO, ou seja, a autoridade vista como um ato juridico de outorgar o poder a uma determinada pessoa. Esse paradigma, quando é vivido por uma pessoa que também, além de ser juridicamente nomeada, tem liderança, a autoridade pode ser exercida de uma forma muito diferente, libertadora, se for uma liderança de quem abre caminhos, de quem cria coisas novas, que está voltada para o futuro. Mas isso não é uma coisa que se possa esperar de todos, e não é uma coisa automática. Essa mudança de paradigma supõe uma aprendizagem que a Vida Religiosa ainda não tem e levará um tempo para fazer a transposição das categorias de autoridade e governo para outra estrutura mais dialogante, participativa, que envolva a todos.
O problema da liderança mais importante não é, digamos, o modo de exercer, porque mesmo numa estrutura tradicional nas empresas, hoje em dia, a participação e o envolvimento das pessoas é muito maior, e na Vida Religiosa também há muito mais diálogo, estrutura de participação, mesmo que haja ainda muito risco de pessoas exercerem essas funções de uma maneira muito autoritária, muito impositiva. O mais importante não é o modo, embora isso tenha que mudar, também, mas o fundamental é acertar com pessoas que sejam verdadeiramente inspiradoras do novo e capazes de animar as pessoas a buscarem e a caminharem na direção do novo. É o que precisa hoje a Vida Religiosa. Evidentemente que, para mim, o problema fundamental da autoridade na Vida Religiosa é que o aspesto jurídico foi tão acentuado, que parece que alguém que juridicamente foi nomeado para uma função, de repente, tem dons e poderes arbitrários que antes não tinha nem poderia exercer.
Essa visão jurídica de autoridade, então, não cabe mais na Vida Consagrada?
Padre Carlos – Essa visão juridica é cada vez mais, claramente, uma visão unilateral e insuficiente e ela só pode ser corrigida à medida que percebermos que a função da autoridade na Vida Religiosa Apostólica só pode ser o horizonte da missão, quer dizer, autoridade não é para mandar e exercer despoticamente e tomar decisões. Autoridade é para ajudar as pessoas a buscarem juntas qual é a missão que Deus pede de nós num momento determinado. Enquanto não se fizer essa mudança de horizonte, poderá haver reformas no modo de exercer autoridade, mas a concepção de fundo continuará a mesma. Essa mudança de paradigma jurídico para o horizonte da missão é fundamental nesse processo que estamos vivendo atualmente.
Tudo isso que foi dito pelo senhor diz respeito ao modo de exercer autoridade no horizonte da Vida Apostólica. Então não horizonte da Vida Monástica seria uma outra coisa?
Padre Carlos – Sim. É outra coisa, porque o modelo é diferente, quer dizer, a Vida Contemplativa, a Vida Monástica é uma vida que se realiza em si mesma dentro dos limites do mosteiro. Eles não têm propriamente uma missão Ad extra, para fora, apostólica com outros. Poderão fazer, ajudar pessoas pela escuta, de outras formas, mas como Vida Religiosa. A vida se processa dentro desse quadro e tudo gira ao redor do movimento da comunidade.
Talvez seja por isso que as nomenclaturas para a autoridade na Vida Monástica sejam diferentes, como Abade, prioressa?
Padre Carlos – Certamente. Não é à toa que na Vida Monástica o superior é chamado de abade, ou abadessa, prior ou prioressa. Abade vem de Abbá, que significa ‘pai’. A função dessa estrutura de governo na Vida Monástica é cuidar da casa, cuidar da família, como um pai de família ou uma mãe de família que cuida dos filhos, é o pai, a mãe espiritual, etc. Na Vida Apostólica não é assim porque eu posso ter um pai espiritual, uma mãe espiritual que não é necessariamente o superior, a superiora. A função do superior, da superiora está para a missão apostólica, não é para a minha vida pessoal ou para a vida da comunidade. Essa estrutura monástica exige uma estrutura de autoridade e de governo que é muito diferente e que está voltado para alimentar e fazer, digamos, fecundar essa vida em comunidade. A estrutura é outra, embora chamemos de superiores também as abadessas e abades, mas o cuidado é sobre a casa, a família que lhes é concedida.
A gente compreende melhor isso quando percebe a origem da Vida Religiosa. Primeiro eram ermitães, eremitas que viviam dispersos e sozinhos e faziam sua vida evangélica como eram inspirados por Deus; depois, aos poucos, foram aparecendo figuras que chamavam a atenção, por exemplo, em tal lugar, vez ou outra corria a notícia de que em determinado lugar havia uma mulher eremita que era ótima conselheira ou então algum ermitão de fama, etc. E com frequência os/as eremitas iam à sua procura para serem orientados ou receberem algum conselho. Isso foi propiciando esta convivência em comum, que depois se desenvolveu propriamente na Vida Monástica, mas sempre buscando ajuda de alguém como referencial para poder viver plenamente essa dedicação ao Evangelho. Na Vida Religiosa Apostólica o acento recai sobre a missão e não recai sobre a vida em comum, embora tenhamos também vida fraterna, mas é outra função. Nossa vida está para a missão e não para nos alimentarmos e nos sentirmos bem. Percebe a diferença?
Parece-me que há uma confusão entre esses horizontes. A Vida Religiosa Apostólica parece estar voltada e estabelecida nesta dinâmica de vida contemplativa. Certo?
Sim. Sim. É o que eu disse antes, a passagem da vida apostolica pelo modelo monástico deixou marcas indeléveis que ainda não estão absorvidas e saradas também. Isso faz parte do processo que nós estamos vivendo.
Entrevista realizada por Rosinha Martins, em Porto Alegre, no dia 23 de agosto de 2015, por ocasião do encontro internacional do Governo Geral e provinciais da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo-Scalabrinianas.