A Igreja Católica e o Golpe de 1964

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Por Frei Betto| 03.04.14| Sabemos que o povo latino-americano é profundamente religioso. Pergunte a um pequeno agricultor qual a sua visão de mundo e, com certeza, receberá uma resposta de caráter religioso.

Sabemos todos? Quase todos. Exceto certa parcela da esquerda latino-americana que, influenciada pelo positivismo marxista europeu, se esqueceu de aplicar o método dialético ao fator religioso e, na contramão de Marx e Engels (vide O Cristianismo Primitivo, de Engels) considerou tudo o que cheira a água benta e incenso pura alienação a ser duramente combatida. E o pior: incluíram nos estatutos de seus partidos a exigência de o novo militante declarar-se formalmente ateu… Ou seja, primeiro, ateu; depois, revolucionário.

Já a direita, mais inteligente em sua esperteza, sempre soube explorar o fator religioso em seu proveito. Assim, para evitar que Jango implementasse no Brasil reformas de base (estruturais) evocou a proteção anticomunista de Nossa Senhora Aparecida e importou dos EUA o padre Peyton que promoveu aqui, nas principais capitais, Marchas da Família com Deus pela Liberdade.

Veio o golpe militar, a 1º de abril de 1964, e não era mentira… Jango foi deposto e a Sanha repressiva se dissipou pelo Brasil. 

Como membro da direção nacional da Ação Católica, participei no Rio, no Convento do Cenáculo, na rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, da reunião da CNBB na qual os bispos católicos definiram sua posição frente à quartelada. Houve acalorada discussão entre progressistas e conservadores. De um lado, Dom Helder Camara, bispo auxiliar do Rio, apoiado por Dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo e presidente da CNBB, criticaram os militares por desrespeito à Constituição e à ordem democrática. De outro, Dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e Dom Geraldo Sigaud, arcebispo de Diamantina (MG), exigiam Te Deum por ter a Virgem de Aparecida escutado os clamores do povo e livrado o Brasil da ameaça comunista. Venceu esta segunda posição. A CNBB deu seu apoio oficial aos militares golpistas.

Porém, não há mal que sempre dure. Àquela altura, um amplo setor da Igreja Católica já estava comprometido com a resistência à ditadura. Esta não soube perceber a diferença entre católicos progressistas e conservadores. Cometeu o equivoco de considerar a Igreja uma instituição monolítica, de poder centralizado, unívoco, que tacitamente acendia uma vela a Deus e outra ao diabo.

O germe do progressismo católico no Brasil havia sido semeado pela Ação Católica, influenciada pela Ação Católica francesa que, na Segunda Guerra, participou da resistência ao nazismo em aliança com os comunistas. Aqui, a JEC (Juventude Estudantil Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica) se destacavam na luta por justiça no movimento estudantil. Desses movimentos nasceu a Ação Popular, na qual os militantes católicos de esquerda atuavam sem prestar contas aos bispos nem comprometer a instituição eclesiástica.

Na primeira semana de junho de 1964, dois meses após o golpe, o CENIMAR, serviço secreto da Marinha, promoveu no Rio o arrastão destinado a prender militantes da Ação Popular. Para ele não havia diferença entre Ação Católica e Ação Popular. O apartamento da direção nacional da Ação Católica, da JUC e da JEC, vizinho do Convento do Cenáculo, foi invadido na madruga de 5 para 6 de junho de 1964. Fomos todos presos.

Em outras regiões do país, leigos, religiosos(as) e padres foram perseguidos, presos e/ou convidados a depor em IPMs (Inquérito Policial Militar).

Logo a repressão percebeu que nem toda a Igreja apoiava o golpe. Havia até mesmo bispos e cardeais críticos à ditadura e dispostos a defender os direitos humanos. Muitos se engajaram em ações de resistência, seja proferindo sermões tidos como “subversivos”, seja escondendo perseguidos políticos.

A partir da prisão dos frades dominicanos aliados à Ação Libertadora Nacional comandada por Carlos Marighella, em novembro de 1969 (vide meu livro e filme de mesmo título, dirigido por Helvécio Ratton, Batismo de Sangue), aprofundou-se o conflito entre Estado e Igreja Católica. A CNBB, já então hegemonizada por bispos progressistas, emitiu documentos em defesa dos direitos humanos e da democracia, e o papa Paulo VI respaldou os religiosos encarcerados.

Em São Paulo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns criou, a partir de 1970, uma vasta articulação de resistência e crítica à ditadura, e defesa dos direitos humanos: Comissão Justiça e Paz, equipe Clamor, jornal O São Paulo, culminando na publicação do mais consistente documento antiditadura produzido até hoje, o livro Brasil Nunca Mais, no qual os crimes da ditadura são divulgados com base, não em notícias de jornais, e sim em documentos oficiais elaborados pelas Forças Armadas.

Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.

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