Missionários Combonianos em Tali Post, no Sudão do Sul: Oásis de paz e fé

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Por padre David Domingues, Missionário Comboniano | Na localidade de Tali Post, entre o povo Mundari do Sudão do Sul, os missionários combonianos reconstruíram a missão como centro de evangelização e promoção social. As cicatrizes de décadas de guerra ainda são visíveis, mas hoje Tali Post é um oásis de paz e de fé, onde as pessoas vivem o sonho de refazer as suas vidas.

Os preparativos tinham sido feitos meticulosamente antes da nossa partida: alimentos e bebidas, pneus sobresselentes e, mais importante, 40 litros de gasóleo para percorrer uma estrada de piso irregular de 300 km que nos aguardava na manhã seguinte. O nosso destino final foi Tali Post, uma missão dirigida por três missionários combonianos, o P.eMarkus, o P.e Albino e o Ir. Damiano, entre os Mundaris, no canto noroeste do Estado da Equatória Central, no Sudão do Sul. No final da viagem, encontrámos um oásis de paz e de fé entre as cicatrizes ainda omnipresentes de décadas de guerra.

Saímos de Juba, a capital sudanesa, de manhãzinha, ainda estava escuro. Simon, o nosso experiente motorista, não queria perder tempo, pois sabia do que um caminho acidentado e poeirento é capaz. Eu, visitante português vindo das Filipinas, e o Ir. António, o administrador das nossas missões no Sudão do Sul, estávamos dentro do nosso veículo ansiosos para reencontrar os nossos irmãos que trabalham nas terras remotas e isoladas de Tali Post.

A nossa jornada continuou na estrada poeirenta e esburacada. Tivemos de abrandar muitas vezes por causa dos rebanhos de cabras ou das manadas de vacas que atravessam a estrada. Eles tinham a prioridade, porque atropelar uma vaca ou uma cabra significaria longas horas de negociações, a resolução não seria menos de duas ou três vezes o valor da vítima. Ou seja, se matarmos algum, temos de pagar o valor de dois ou três desses animais. Sabendo isto muito bem, o Ir. António foi continuamente lembrando Simon, dizendo: «As vacas e as cabras dos Mundaris são como os sinais vermelhos na estrada. Quando os vir, é mais sensato parar do que arrepender-se de não o ter feito.»

 O gado é o seu dinheiro

 Os Mundaris podem ser considerados agropastores, porque não só criam gado, vacas, cabras e ovelhas, como também cultivam os seus campos em redor da sua propriedade na época da estação chuvosa. A cultura mais importante é o sorgo, o seu principal alimento básico. Também cultivam milho, amendoim, feijão, mandioca e outros tubérculos. No início da estação seca, quando os rios e pântanos secam, recorrem à captura de peixes com lanças, armadilhas ou redes para terem alimentos. No fim de contas, as vacas são demasiado preciosas para serem mortas para a alimentação diária. São reservadas para ocasiões especiais como casamentos ou para receber personalidades como o bispo.

A terra ocupada pelos Mundaris é uma savana arborizada – em ambos os lados do rio Nilo. A parte ocidental, à qual pertence Tali, tem inúmeros igarapés sazonais e perenes e torna-se pantanosa na estação chuvosa. Como outras tribos nilóticas, os Mundaris estão muito relacionados com o gado. O gado e os produtos bovinos servem uma série de funções sociais e económicas importantes. O gado é o seu banco, o seu ouro, a sua moeda como eles se envolvem no comércio e, mais importante, a única forma de conseguir uma esposa ou esposas, de acordo com o número de vacas que são capazes de pagar à família das mulheres com as quais se querem casar. Da mesma forma, o divórcio é resolvido com vacas. As mesmas vacas ou, pelo menos, o mesmo número, devem ser devolvidas ao marido se a mulher decide sair de casa. Isso põe uma enorme pressão sobre as mulheres, que, mesmo em situações de abuso e violência, são forçadas pelas suas próprias famílias a permanecer com os seus maridos para que as vacas não tenham de ser devolvidas.

Os criadores vendem gado quando precisam de dinheiro ou compram gado como investimento quando têm dinheiro extra. Em função das tradições e costumes locais, o gado também pode ser usado para sacrifícios rituais ou como moeda corrente. O gado produz leite, que pode ser consumido pela família ou vendido no mercado local. Uma vez que o mercado local de Tali e as aldeias vizinhas não oferecem grande variedade de produtos – pelo afastamento e as condições das estradas difíceis, em particular, durante a estação chuvosa – as pessoas confiam inteiramente nos seus próprios produtos. As cabras e as ovelhas são mantidas para os mesmos fins.

Ao longo do caminho acidentado, vimos as marcas deixadas pela guerra devastadora, a guerra que levou à constituição do Sudão do Sul como país independente do Norte em Julho de 2011. Reclamou muitas vidas e ainda o continua a fazer. Entre as árvores, ao longo da estrada, pedaços de madeira e pedras são pintadas de vermelho para sinalizar áreas de minas terrestres. Simon foi muito cuidadoso para não perder o trilho da estrada. Um grande número de minas terrestres ainda estão a ser localizadas e desarmadilhadas. De vez em quando, reclamam vítimas, geralmente crianças que acompanham o gado para lugares onde a erva é mais abundante e os pântanos estão com mais água. Logo depois, passamos o acampamento de uma ONG, que ainda está a realizar o trabalho perigoso de desminagem da área.

 A terra da paz

 Depois de seis horas de árdua viagem e cobertos de poeira vermelha, chegamos finalmente ao nosso destino, a nossa missão em Tali Post. Como foi bom abraçar, com amor fraternal, os nossos três irmãos na missão de Tali! Quão grande era a vontade de engolir uns quantos copos de água fresca de uma panela de barro a uma temperatura ambiente de 41 ºC. Tali é agora uma terra de paz, onde as pessoas tentam reconstruir as suas vidas de uma guerra que não só levou muitos dos seus parentes, mas também as infra-estruturas básicas e meios para a sua sobrevivência. Além do dialecto mundari comum, outras línguas faladas na região são o bari, o inglês e o árabe simplificado.

Os primeiros missionários católicos que chegaram a esta região, no início de 1950, foram os missionários combonianos provenientes de Terakeka. Estabeleceram-se a cerca de 7 quilómetros a leste de Tali Post e começou ali, em 1954, uma missão, chamada hoje Akennwel Simagor ou Missão Velha. As ruínas da igreja e da casa dos missionários ainda podem ser vistas e as pessoas contam orgulhosamente histórias da sua igreja (agora reduzida apenas a quatro paredes). A paróquia foi dedicada a Nossa Senhora de Fátima. Hoje, a Missão Velha, uma comunidade viva sob a orientação de um catequista agora cego e velho, é uma filial da paróquia de Tali. O meu corpo tremia todo quando vi o velho cego. O seu rosário estava à volta do pescoço como um colar de ouro precioso. Uma criança pequena guiava-lhe os passos com uma vara: a criança segurava uma extremidade e o velho homem a outra. Outrora, ele fora o guia desta comunidade entusiasta da fé. Agora, aceita ser cuidadosamente guiado por essa criança. Ainda assim, tem o respeito e apreço de todos.

O primeiro período de evangelização terminou entre 1962 e 1964, quando todos os missionários estrangeiros foram expulsos do Sudão. As missões construídas por eles foram deixadas a apodrecer. As ruínas da outrora grande igreja permanecem como o centro dessa comunidade cristã. A fé nos corações do povo sofrido ainda hoje é vibrante.

 Treinar os jovens

 Atualmente, os padres Markus e Albino e o Ir. Damiano continuam as diferentes tarefas da missão entre os Mundaris. A sua prioridade era construir poços em diferentes áreas de habitação para garantir água potável para as pessoas que ainda recolhem água de pântanos onde as vacas bebem, as pessoas tomam banho e praticam as suas habilidades de arpoar peixe para uma refeição melhor.

«Aqui, a maior necessidade das pessoas é a educação básica, para responder aos desafios reais da vida numa região remota e isolada como esta», diz o Ir. Damiano. Com a disponibilidade de água, foi possível ter pequenas plantações agrícolas, à volta das quais se estabeleceram os fundamentos pedagógicos do Ir. Damiano para os jovens. Agora, ele tem cerca de 20 jovens em diferentes áreas de actividade. Alguns aprendem a fazer bom uso da terra fértil, cultivando alguns legumes que são um bem raro na região e, portanto, considerado um luxo para as refeições diárias. Os outros aprendem as noções básicas de mecânica de automóveis e tornaram-se o ponto de referência para reparar, não apenas os poucos carros da missão e das ONG que trabalham na área, mas também as motos e bicicletas das aldeias vizinhas. Outros tornaram-se carpinteiros, enquanto os restantes sobressaem em habilidades ligadas à sua origem pastoril: cuidam das ovelhas, coelhos reprodutores e aumentam o número de galinhas que, além dos ovos que põem, também são um bónus para as refeições dos missionários em ocasiões especiais. As mulheres não são esquecidas. O Ir. Damiano fornece-lhes os meios para um trabalho de alfaiataria. Supervisionando tudo, ele coordena incansavelmente os diferentes aspectos de trabalhos práticos, motivando as pessoas a sonhar com um futuro melhor.

Alguns jovens são enviados para um treino especial. Um deles, depois de dois meses no Hospital Comboniano de Mapuordit, agora dirige o pequeno dispensário. Não tem diploma. Nem sequer terminou o ensino médio, no entanto, é a única esperança de muitas pessoas que vivem em redor da área da missão. O hospital mais próximo fica a três horas de distância. Além das estradas ruins, não há ambulância e, durante a época das chuvas, as estradas não são transitáveis, Tali torna-se completamente isolado. Muitos vêm procurar ajuda – as mulheres a entregar os seus bebés, pessoas que têm feridas ou necessitam de medicamentos para lidar com a terrível malária… Os recursos são escassos, mas, com a orientação do Ir. Damiano, treinado no tratamento da hanseníase, algumas situações podem ser tratadas de imediato e, portanto, muito sofrimento é evitado.

 Celebrações da vida

 A extensão da paróquia de Tali abrange cerca de 60 km na direcção norte-sul e 100 km no sentido leste-oeste. Inclui Tali e Tindilo Payams. Actualmente, a paróquia conta com 35 capelas, divididas em seis zonas. Em cada capela, normalmente, há dois catequistas voluntários que são responsáveis pela animação da liturgia no domingo, preparam os candidatos para a recepção dos sacramentos, visitam as famílias e os doentes e tentam animar a comunidade de fé, criando um espírito de comunhão. Em toda a área de Tali e na maioria das capelas, há diferentes grupos já organizados: Legião de Maria, grupo de jovens, acólitos, dançarinos litúrgicos chamados Cruzados e o grupo coral. Os padres Markus e Albino passam a maior parte do seu tempo a visitar as 35 capelas. Partilham alegrias, dores e esperanças do povo; as celebrações, na pequena capela ou sob a maior árvore, tornam-se momentos sagrados que culminam sempre com a partilha de comida simples. Apesar da sua pobreza, encontram sempre algo para compartilhar.

O P.e Markus está agora preocupado com algumas áreas onde a fome começa a ser uma realidade. As últimas safras não foram tão abundantes e a estação seca já dura há muito tempo. Como as lagoas estão quase secas, a pesca também não é possível. As pessoas começam a dirigir-se à missão a pedirem comida. A oferta de arroz e feijão armazenados pode não ser suficiente para as necessidades. Além disso, se as chuvas vêm, as estradas não serão transitáveis durante meses, o que torna impossível trazer bens essenciais de Juba ou do Uganda.

 Barreiras à alfabetização

 Mesmo num cenário de escassez de alimentos ou até mesmo de grande fome, os missionários acreditam fortemente na educação das pessoas para o futuro. O Sudão do Sul tem uma taxa de analfabetismo de cerca de 85 por cento e, ao que consta, menos de 5 por cento frequentam a escola primária. Na área de Tali, «a taxa de analfabetismo pode ser mesmo superior a 98 por cento», diz o P.e Markus. As escolas são acessíveis apenas para aqueles que vivem perto de Tali. Além disso, a instrução nesta área e entre os Mundaris é um privilégio masculino. «A maioria das meninas na nossa área não têm instrução. Outras dificilmente podem completar o ensino primário por causa do casamento precoce», comentou o P.e Markus.

A escola primária de Tali foi inaugurada em Abril de 2010. Ao início, com 250 crianças matriculadas, as aulas foram dadas debaixo das árvores. No entanto, depois de Novembro de 2011, quase 350 crianças haviam-se inscrito para a 4.ª classe. Agora, cada classe tem a sua própria rokuba (cabana) aberta e segue o programa do Sudão do Sul, esperando atingir a 8.ª classe em 2015. Ao mesmo tempo, o esforço está a ser feito para alcançar as meninas que não frequentam a escola. O P.e Markus está plenamente consciente de que «a educação das raparigas é crucial» e «espera que as famílias descubram o valor da educação das mulheres».

Na minha curta estada em Tali, fui convidado para o desfile da manhã das crianças e seus professores. Antes da bandeira nacional, o hino nacional foi cantado, e uma mensagem foi dada pelo director – apelando para o bom comportamento e empenho em estudar. Mas, antes de cada turma se mudar para a sua rokuba (cabana), foi dado um tempo para partilhar uma oração inspirada. Só depois as aulas começaram, sob a orientação atenta dos professores.

 Uma comunidade viva

 No final da nossa visita a Tali Post, tornei-me testemunha dos esforços de evangelização feitos pelos nossos irmãos nesta área remota. Eles estavam a preparar-se para a visita do bispo. Fazia alguns anos desde que a última visita havia ocorrido. A emoção era evidente. Dos mais novos aos mais velhos, todos estavam empenhados em diferentes preparativos: os homens encarregaram-se da construção de sombras onde as pessoas se pudessem reunir à volta da sua igreja. Debaixo do calor escaldante, cobertos de suor, a sua alegria não poderia ser contida, enquanto eles colocam as sombras construídas de simples varas de bambu e erva seca.

A poucos metros da igreja, as mulheres ocupavam-se a cozinhar – feijão, arroz e carne – tudo doado pelas diferentes comunidades. Pude ver que tinham aprendido bem a lição da partilha, porque, além de responder às suas próprias necessidades, eles ainda podem poupar o suficiente para partilhar e alimentar a multidão.

Usando as diferentes rokubas para as aulas, os adolescentes, sob a orientação dos seus catequistas, praticam danças alegres e coloridas para acolher o seu pastor e para animar a liturgia, onde muitos iam para receber o Sacramento da Confirmação.

Sim, na verdade, em Tali encontrei uma comunidade viva, onde jovens e velhos têm lugar, onde o «pouco» é generosamente multiplicado e Deus é encontrado e celebrado não numa igreja de fantasia ou em celebrações formais, mas numa vida que é compartilhada em simplicidade; onde os missionários responderam não só à pobreza do povo, mas também à sua vontade de aprender, crescer e realizar os seus sonhos. Por um momento, invejei os meus irmãos em Tali. Quão abençoados são eles por poderem ser parte desta bela caminhada de crescimento das pessoas. Por isso, senti-me abençoado também. A minha visita à comunidade de Tali é uma daquelas experiências que irei guardar e reviver de modo que o fogo da missão em mim continue a queimar.

Fonte: alem-mar

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