Francisco e migrantes: vozes que chegam do “fim do mundo”

Compartilhe nas redes sociais

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no telegram
Telegram

No dia em que foi eleito à cátedra de Pedro, o Papa Francisco brincou que tinham escolhido como pontífice alguém que “vinha do fim do mundo”. A brincadeira, porém, não comportava qualquer exagero. Desde logo, mudava-se o “lugar social” a partir do qual o chefe máximo da Igreja Católica passava a se manifestar. Mudava-se o “ponto hermenêutico” a partir do qual interpretar suas palavras, gestos e documentos. Alguma coisa se transformava no interior da Igreja, seja do um ponto de vista eclesiológico, seja do ponto de vista da tomada de decisões. Deslocava-se para a periferia o centro de onde haviam governado os seus antecessores. O eurocentrismo eclesial cedia alguns passos em favor de uma descentralização cujo caminho acabava de descortinar-se. Certo, a cátedra de Pedro permanecia em Roma, mas seu ocupante trazia na bagagem novas formas de interpretar a Palavra de Deus, a tradição judaico-cristã, a doutrina da Igreja e a própria função não como poder, mas serviço.

De igual maneira que o outro Francisco, o de Assis, quase um milênio antes, Jorge Bergoglio também resolveu despir-se de uma atitude que remetia aos séculos solenes e pomposos de uma Igreja aliada aos senhores do dinheiro e do poder. Despojou-se de alguns símbolos visivelmente associados à casta principesca, apresentando-se desde o início como servo dos servos. E mais, inclinou a cabeça e pediu ao povo preces e bênçãos. Líder não é aquele que conduz as massas, e sim aquele que se deixa conduzir por elas – lembraria o filósofo italiano Antonio Gramsci, ao cunhar o conceito de “intelectual orgânico”. Este torna-se porta voz da classe social na medida em que é capaz de ler e interpretar seus pesares e anseios mais profundos.

O novo Papa não somente vinha do fim do mundo, de um país do Sul e da periferia do planeta. Trazia desse recanto, ademais, clamores silenciados e silenciosos, bem como uma nova chave hermenêutica para lê-los e interpretá-los. O pastor da grande Buenos Aires conheceu de perto e na pele, entre outros gritos saídos dos subterrâneos da ditadura militar, a dor das Mães da Praça Maio. Sabia da teimosia dos movimentos sindical, estudantil e popular, além das organizações não governamentais (ONGs). De mais próximo ainda, acompanhou a prática das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), cuja pedagogia eclesial vinha iluminada pela Teologia da Libertação (TdL). Havia participado das Assembleias Episcopais da América Latina e do Caribe.

Essa longa experiência logo o conduziu a gestos, viagens e palavras desconcertantes. Sacudiu e despertou a sonolência de uma Igreja que dava sinais de acomodar-se a um formalismo ritual e litúrgico de sacristia. Com voz altissonante fez ver que as mudanças profundas e radicais não nascem no centro, mas se originam na periferia. Somente quando esta última pressiona, através do movimento de vozes, grupos e massas mobilizadas, então o centro pode deixar-se interpelar e tomar decisões inovadoras. A Boa Nova vem do não lugar: melhor lugar para lançar as raízes do novo lugar. O fruto só cai da árvore quando está maduro. Decretos e transformações são fruto das bases que cultivam a semente e do tempo faz crescer a espiga.

A experiência profética de Bergoglio, entretanto, fez mais, muito mais! Jogou luz sobre rostos antes desconhecidos e invisíveis, como é o caso dos migrantes e refugiados. Do fim do mundo, trouxe para o centro do palco sua voz calada e calcada pela guerra e a violência, pela pobreza e a fome. Rasgou o tênue véu das aparências e da hipocrisia, demonstrando que milhões de seres humanos só se tornam visíveis através do naufrágio e da tragédia, na hora da morte. Outros, aos milhares, tragados pelas águas ou pelas areias, ficarão para sempre esquecidos, sem nome nem rosto, apenas frios números e estatísticas. O Papa fez questão de marcar presença nas ilhas de Lampedusa (Itália) e Lesbos (Grécia), bem como na dramática fronteira entre México e Estados Unidos, encruzilhadas de travessias, onde ilusões e desilusões de mesclam e se fundem. Vozes e rostos que chegam de longe, do fim do mundo, para nos recordar que a fé e a esperança seguem vivas, apesar dos ombros encurvados, dos joelhos vergados e dos olhos no chão.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 15 de junho de 2021

Publicações recentes