Feminismo e Conversão da Linguagem

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Maria Clara Bingemer

Quando tive meus primeiros contatos com o feminismo, a primeira conversão que percebi como necessária e urgente foi a da linguagem. Depois vieram outras e mais outras.  E críticas que converteram a conversão. Mas essa primeira ficou. E quando nos preparamos para celebrar o Dia Internacional da Mulher, importa relembrá-la.

Em que consiste essa conversão? Trata-se de fazer um esforço no sentido de corrigir o que se fala e diz, oralmente ou por escrito. É não dar nada por suposto e evitar toda generalização. É romper com o esquema patriarcal e machista que sempre dominou o falar humano e que identifica a humanidade com a metade masculina da mesma. 

Interagindo com colegas acadêmicas de outros países, percebi que em suas conferências e mesmo nos diálogos mais casuais e descontraídos, jamais era por elas usada a expressão “o homem” para se referir à humanidade. Buscavam-se equivalências mais inclusivas, como “o homem e a mulher”, “o ser humano”, “a pessoa humana”. O objetivo era ajudar a tomada de consciência de que a mulher é plenamente partícipe da humanidade criada por Deus e, portanto, não pode ser excluída nem da linguagem. Ou mesmo sobretudo da linguagem. 

Por que toda essa importância dada à linguagem? Simplesmente porque nós, humanos, somos seres de linguagem. Nela nos expressamos, nela nos dizemos, nela nos comunicamos. Através dela propomos, criamos. Em suma, pela linguagem e nela existimos enquanto seres livres e relacionais. 

O ser humano é fundamentalmente um ouvinte da Palavra. Dessa escuta nascem a resposta da fé e o pensar da teologia. Mas além de ser um ouvinte da Palavra, esse mesmo ser humano é também e não menos um ser criador e emissor de palavra, um ser de linguagem. A linguagem descobre a realidade humana enquanto sinal e expressão, meio dessa condição. Faz vir à tona sua capacidade criativa.

Portanto, a linguagem não apenas assimila e repete o que lhe foi revelado e ouviu acriticamente. Mas cria realidade, a faz existir. É, portanto, não meramente informativa, mas performativa. Descobre e manifesta a realidade humana na medida em que a liberta. Emancipa o ser humano da violência muda dos instintos, da rotina, do imediato; provoca a liberdade abrindo-lhe espaço criador.  

E este que se auto compreende como ouvinte da palavra, aprende e recebe esta palavra que lhe é dada ao mesmo tempo que, enquanto ser de linguagem, a constrói e a profere. A linguagem descobre-o e revela-o como ser que se deve a si mesmo; descobre e revela suas múltiplas conexões: origem, tradição, pertença, sociedade; descobre e revela sua realidade na medida em que lhe possibilita fazer presentes o invisível, o ausente, o passado e o futuro, a história e a transcendência; permite-lhe escapar do presente redutor e coercitivo; descobre sua realidade como ser dialógico e para os outros. Revela, em suma, que a forma fundamental da palavra é o diálogo.

A linguagem implica liberdade. Implica que o ser humano é um ser feito para a comunicação, criado enquanto livre interlocutor de um Tu que o interpela e a quem ele é chamado a responder. E igualmente interlocutor dos vários “tu” humanos com os quais se encontra pelo caminho da vida. O ser humano é um ser de comunicação. A comunicação é intersubjetividade, relacionalidade, componente essencial da vida humana. Onde não há comunicação, não há entendimento ou comunhão.

A palavra tem, portanto, na vida humana, função curativa, terapêutica, redentora, uma vez que devolve o ser humano a si mesmo na sua condição fundamental de ser feito para a relação com o outro. Esse é o papel da psicanálise, da direção espiritual, da confissão. Se a palavra redentora é pronunciada a tempo oportuno, humaniza e ajuda o ser humano a crescer e a tornar-se plenamente ele mesmo.

Cada ser humano é e existe graças à linguagem. Na medida em que somos seres relacionais, existimos em nosso falar recíproco.   Mas ao mesmo tempo a linguagem participa da finitude e da limitação de tudo que é humano. De sua ambiguidade, velamento, mutismo.

Celebrando o Dia Internacional da Mulher – que coincide com o tempo litúrgico da Quaresma, onde os cristãos entram em um caminho de conversão – podemos converter nossa linguagem. Tomar consciência de que somos parte de uma humanidade criada à imagem de Deus como macho e fêmea. Não corresponde àquilo que somos mencionar somente um lado dessa imagem: o lado do macho. Incluir o feminino na linguagem pode parecer pouca coisa.  Mas é um passo importantíssimo para construir uma sociedade menos machista e mais justa. 

Maria Clara Bingemer  é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo”  (Editora Rocco), entre outros livros.

 

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