Vivemos um momento singular da história da humanidade, caracterizado pela mudança de paradigmas em todos os campos do saber e da atividade humana, abalando os quadros referenciais que até há pouco tempo eram considerados sólidos e intocáveis. E, ao mesmo tempo, percebe-se a emergência dos valores da igualdade e da diversidade e a busca de caminho para uma convivência harmoniosa entre os povos. Os temas liberdade, diversidade, pluralidade e subjetividade ganham força, impulsionados também pela globalização e pela cultura da mídia.
Neste contexto, a vida religiosa consagrada sente-se fortemente atingida e vive uma situação de perplexidade em relação ao futuro e ao seu lugar na Igreja e na sociedade. Em todos os lugares, é grande o seu esforço para transfigurar o seu rosto, adequando-o aos tempos pós-modernos e à cultura digital.
O contexto atual convoca os cristãos, e em particular, os (as) consagrados (as) para uma urgente e desafiadora tarefa: a escutar a Voz da Palavra que ressoa na Revelação, na Criação, na história, na realidade, no gemido dos que sofrem; a discernir o Rosto da Palavra em Jesus, Verbo encarnado, e no rosto desfigurado dos pobres das nossas periferias geográficas e existenciais; a construir a Casa da Palavra, em comunidades orantes e missionárias, fraternas e solidárias; a percorrer os Caminhos da Palavra na missão, nos campos e nas cidades, nas estradas da comunicação e da cultura digital.
Em vários momentos, o Papa Francisco, na Exortação Apostólica Gaudete et Exultate insiste na importância da escuta atenta e silenciosa da Palavra. Para ser fecunda e produzir abundantes frutos de amor e de justiça, a Palavra precisa ser escutada com atenção e acolhida sinceramente no coração. Na dinâmica do seguimento radical de Jesus, a atitude de escuta autêntica é fonte geradora de vida nova e de rostos transfigurados; faz florescer o amor e a justiça e situa os (as) religiosos (as) na continuidade dos profetas e profetisas bíblicos, que souberam indicar ao povo os caminhos do Senhor.
Escutar não é simplesmente ouvir algo externo; é uma atitude contemplativa e profética que gera compromisso com a realidade escutada; é uma comunicação amorosa e fiel. A verdadeira escuta leva a estabelecer um diálogo fecundo. O Deus do êxodo escuta e dialoga com seu povo. “Vi a opressão do meu povo, ouvi seus gritos por causa de seus opressores; pois eu conheço suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-los” (Ex 3,7).
Deus, que vê a humilhação de seu povo, escuta seu clamor e reconhece seus sofrimentos, dialoga com Moisés. Ele desce para libertar seu povo das mãos de seus opressores e não realiza sozinho esse processo de libertação, mas por meio das pessoas que escutam e aceitam o seu convite: “Vai! Eu te envio; eu estarei contigo” (cf. Ex 3,12).
A arte de escutar com o coração chama-se obediência, palavra de origem latina que significa, literalmente, dar ouvidos a, escutar, seguir os conselhos de alguém. Da escuta verdadeira nasce a fé. A obediência na fé implica uma atitude de silêncio interior, de esvaziar-se de si mesmo, de eliminação dos ruídos que distorcem ou interferem na comunicação da mensagem.
A escuta cristã é, em primeiro lugar e acima de tudo, escuta do Filho amado do Pai, Jesus: “Este é meu Filho amado, escutai-o” (Mc 9,7). Somos ouvintes da Palavra que é o próprio Cristo. Somente a partir desta escuta do Filho Amado, a vida religiosa consagrada adquire seu verdadeiro sentido e originalidade. A experiência de escutar Jesus pode ser desconcertante, pois muitas vezes, suas exigências não estão em sintonia como nossos projetos.
Escutar Jesus é a verdadeira vocação do cristão. A escuta reverente de Jesus é verdadeira e profunda participação nos sofrimentos e nas esperanças, nas angústias e alegrias da humanidade, que tem sua expressão maior na cruz de Jesus, lá onde a escuta se torna obediência e dom total pela vida do mundo (cf. Fl 2,5-11).
É o Espírito que nos introduz na escola da escuta de Jesus e da realidade, a qual se torna para a Igreja de todos os tempos um indispensável critério de discernimento para ler eventos e situações à luz da fé, nas inevitáveis encruzilhadas de uma história em transformação, que geme e agoniza, aguardando ansiosamente a adoção filial (cf. Rm 8,22-25).
A fé como escuta da Palavra exige mudança total, que envolve todo o ser: inteligência, vontade, coração, forças físicas e renova nossas relações, orientando-as, dia após dia, à maior solidariedade, na lógica do amor. Fé e amor são inseparáveis. A fé em um Deus que é amor e se fez próximo do ser humano, encarnando-se e doando a si próprio, indica, de modo luminoso, que somente o amor verdadeiro realiza plenamente o ser humano.
A escuta autêntica de Deus onde a vida clama é expressão de amor total e do compromisso com a justiça do Reino de Deus. Escutar com o coração é um desafio que pede docilidade a ação do Espírito, fonte de mística, profecia e esperança. Por isso, como exorta o Papa Francisco, no início do documento Gaudete et exultate, rodeados por uma grande nuvem de testemunhos dos que nos precederam somos convocados a deixar de lado o que nos atrapalha e correr com perseverança, mantendo os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé (cf. Hb 12,1-2).
Vera Ivanise Bombonatto
Pertence à Congregação das Irmãs Paulinas. É doutora em Teologia Dogmática, responsável pela área de teologia e membro do Conselho Editoria de Paulinas e do Conselho Editorial da Revista Convergência.