O Brasil é refém da pandemia e de Bolsonaro, e o presidente refém do “centrão”. Este tem representado o lado mercenário da política. Movido a “emendas parlamentares”, constitui um ralo sem fundo, por onde escoa parte considerável da riqueza nacional. Não basta o chefe de plantão pagar, e o apoio está resolvido uma vez por todas. Os membros do centrão vivem do jogo da chantagem. Votam pelos interesses do Planalto na medida em que (e somente na medida em que), nas votações da Câmara, vez por vez o governo irriga com dinheiro público a quota de gastos de cada parlamentar. Em lugar de um compromisso definitivo, a fidelidade deve ser paga gota a gota, emenda a emenda. Afinal de contas, como é notório, o parlamentar tem de trabalhar duro para manter sua cadeira cativa no Congresso Nacional!
Resta saber quem paga a conta dessa hemorragia gigantesca sofrida periodicamente pelos cofres públicos. E a resposta tem alguns endereços pontuais. Primeiramente, paga a população mais pobre, carente e vulnerável, com rostos desfigurados pelo cansaço e o abatimento. Encontram-se nas filas das unidades de saúde, muitas vezes sequer chegando a ser atendidos, e em certos casos falecendo antes de chagar a um consultório médico. A conta recai também sobre os ombros das crianças desfavorecidas, com uma educação cada vez mais distante da realidade socioeconômica e político-cultural do país; dos migrantes e das pessoas em situação de rua; dos desempregados, subempregados e todos os que subjazem nos subterrâneos do mercado informal. Numa palavra, o dinheiro que sobra no crédito dos parlamentares, para a população de baixa renda, faltará na mesa e no vestuário, no transporte e na moradia, na escola e na saúde. Paga a conta a multidão dos sem-terra, sem-teto e sem-trabalho, para usar os três “T” do Papa Francisco.
Mas o círculo vicioso do toma-la-dá-cá tem outro endereço bem preciso. Agrava a desigualdade social e econômica, item em que o Brasil figura como uma das nações mais assimétricas de todo mundo. De acordo com Thomas Pikety e com Jessé de Souza – ambos com estudos recentes sobre a distribuição desigual da riqueza – na virada do século XX para o XXI, aprofundou-se o fosso abissal entre os que ocupam a base da pirâmide social e aqueles que se encontram no pico. A pequena fatia de apenas 1% da população mundial detém cerca de 50% de toda a riqueza produzida, enquanto a subnutrição, a miséria e a fome alcançam cerca de um bilhão de pessoas. No Brasil, praticamente a metade da população sofreu nos últimos dois anos algum tipo de insegurança alimentar. Daí o crescimento das filas pela marmita e pela cesta básica.
Ademais do progressivo desequilíbrio entre os que gozam o luxo do andar de cima da pirâmide e os que se escondem no andar de baixo, entretanto, outra distância cresce em igual proporção. Eleitos e eleitores se desconhecem cada vez mais. Os primeiros, ao conquistar pelos votos um lugar cativo no Planalto Central, parecem viver ali como verdadeiros extraterrestres. Navegam numa órbita muito superior aos que, na planície, experimentam “as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias” (Gaudium et Spes, n. 1) do dia-a-dia. A extensa quilometragem e o poder de compra que divide os parlamentares de um lado, e os pobres mortais de outro, é tamanha que estes últimos sequer sonham com as despesas diárias daqueles. E inversamente, os deputados sequer imaginam as dores e penas que sofrem os cidadãos que lhes dão os votos, menos ainda trabalham por seus interesses e direitos básicos.
O círculo vicioso se perpetua de eleição para eleição. A vitória do político abre novas portas para empreendimentos econômicos, ao passo que a força econômica garante maior poder de fogo no próximo processo eleitoral. As pontas se juntam, se fundem e se estreitam, sendo que esse jogo perverso consolida, ao mesmo tempo, a concentração de renda e a exclusão social. Nunca é demais lembrar, porém, que a fidelidade do centrão é irmã gêmea de sua infidelidade. Quando o dinheiro escasseia ou quando se rompe o véu da transparência, o conta gotas deixa de pingar. Opositores voltam a ser o que sempre foram – inimigos!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo 22 de agosto de 2021