A defesa da criação. Dorothy Stang, primeira freira mártir pelo cuidado da “casa comum”

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Clara Temporelli[1] 

A Irmã Dorothy Stang entregou sua vida e encarnou a encíclica do papa Francisco Laudato Si’ (julho de 2015) inspirada no Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis. Texto que, partindo do que se passa na nossa casa (Nº 17-61; 20-22; 27-52), nos convida a deixar “um planeta habitável para a humanidade que nos sucederá” (nº 160).

Doroty foi uma religiosa da Congregação Notre Dame de Namur que se dedicou durante quarenta anos à evangelização em Anapu, paróquia do Pará. Destacou-se pela promoção de desenvolvimento comunitário e pela defesa da floresta contra o desmatamento e a aniquilação da comunidade amazônica (cfr. Laudato Si, nº 36-38). Por essa causa, aos 73 anos, foi assassinada.

O impacto de sua figura é grande e crucial. Sua memória e obra continuam sendo fonte de compromisso e inspiração. A projeção de seu martírio é relevante e tem se tornado para a Igreja Católica em símbolo da nova pastoral que incide sobre a sustantabilidade ecológica. É a primeira vez na história que o Vaticano reconhece a imolação de uma pessoa em defesa do meio ambiente como “ato heróico de fé”, como “mártir da fé”.[2]

Embora neste casa a justiça tenha atuado, condenando seus assassinos, a violência, a destruição da floresta e a extrema pobreza continuam. Também as Irmãs de Notre Dame de Namur, apesar do perigo, da destruição, das ameaças, dos crimes, continuam sua entrega em Anapu.

Doroty intuiu que a Espiritualidade da Criação sustenta a luta pela justiça. Participou em cursos dados pelo Instituto de Cultura e de Espiritualidade da Criação (a Encíclica reservará um bom espaço ao “Evangelho da Criação” (nº 76-100)), “pois a criação tem a ver com um projeto do amor de Deus” (nº 76). Aqueles que se envolviam com ela eram atraídos por sua familiaridade, por seu amor à dança, na qual viu um reflexo das energias vitais com que o Criador adorna suas criaturas. A partir destas vivências sentiu-se cada vez mais livre, mais relaxada, mais em contato consiga mesma e com Deus. Seus familiares a encontravam cada vez mais alegre, apaixonada, criativa. Ela estava determinada a lutar por salvaguardar a criação, pela ecologia ambiental, porém também cuidava da ecologia de seu coração, o que o Papa proporá como uma “ecologia integral” (nº 137.216): “hoje não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeiro abordagem ecológica se torna sempre uma abordagem social, que deve integrar a justiça nas discussões sobre o ambiente, para escutar tanto o grito da Terra como o grito dos pobres” (nº 49).

Depois acrescenta: “o gemido da irmã Terra une-se ao gemido dos abandonados do mundo” (nº 53). Isto cobre todos os campos, o ambiental, o social, o cultural e a vida cotidiana (nº 147-148). É preciso vivê-la a partir de um equilíbrio ecológico “…consigo mesmo, … com os outros,… com todos os seres vivos e… com Deus” (nº 210). Com esta postura interior, em 1992, Dorothy Stang participou da histórica Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Considerava que não levar em conta a gravidade da não renovação dos recursos naturais equivalia a agravar e tornar mais opressora a “estrutura do pecado”, confirmando com ações egoístas do mal no mundo, proclamando o desinteresse pela vida e a morte das pessoas. Também Francisco afirma que os poderes deste mundo “pensam que tudo pode continuar como está”, e “manter seus hábitos autodestrutivos” (nº  59), com “um comportamento que parece suicida” (nº 55); “o certo é que o atual sistema mundial é insustentável a partir de diversos pontos de vista […], perdemo-nos na construção de meios destinados à acumulação ilimitada à custa da injustiça ecológica e da injustiça social. A humanidade tem desapontado as expectativas divinas” (nº 61).

Em cartas a seus amigos, Dorothy explana estes conceitos a partir da realidade que a redeia:

“Trabalho com pessoas que vivem à margem da sociedade. Elas me ajudam a renovar a terra que tanto nos preocupa. Todos somos parte de uma grande unidade.

Estamos na terra somente por algumas décadas. Cada dia temos de levar alegria e não dor à nossa terra tão cheia de angústias.

Como as plantas morrem e voltam a viver, assim também nós, cada dia temos de repousar de tudo quanto tenhamos realizado durante o dia para voltar a começar quando volta a renascer o sol.

Devemos ajudar as pessoas a terem uma relação com a Mãe Terra que seja terna e gentil. É um dom de Deus poder viver de maneira intensa como parte do universo cósmico.

Juntos podemos com muito esforço levar a paz, interesse, alegría e amor ao mundo que está desviando seu olhar, deixando de ver a estrela que nos guia: a bondade do verdadeiro Deus”.

Dorothy compreendeu que a floresta tropical, também chamada pulmão da Terra, desempenha um papel fundamental no intercâmbio de gases entre a biosfera e a atmosfera. Sua dor cresceu à medida que foi testemunha da destruição deste recurso natural vital parar sua gente e o futuro do planeta. Viu que a floresta e seus povos saqueados para obter ganâncias financeiras pelas operações de extração ilegal de madeira, por especuladores de terras[3] e criadores de gado.

Observou que líderes políticos permitiam a destruição contínua. A proteção da floresta amazônica, mediante o fomento de técnicas de agricultura sustentável, era uma ameaça para todos eles.  Como resultado de sua tarefa, latifundiários e políticos falavam abertamente de se livrarem dela.

Anualmente, um terço das mortes da região é causado por pessoas contratadas para o assassinato dos que se opõem à extração e à queimada da floresta para que os campos de soja possam ser plantados, e o gado possa pastar. Dorothy se tornou um objetivo prioritário. Às nove de manhã de sábado, 12 de fevereiro de 2005, ia caminhando junto com uma camponesa. Dirigiam-se a uma reunião do Projeto de Desenvolvimento Sustentável “A Esperança”, levava alimentos e a Palavra de Deus. Na metade do caminho, dois pistoleiros a interceptaram. Proferiram graves ameaças ante as quais simplesmente levantou para o alto a Bíblia mostrando-a como gesto de paz, e começou a ler as Bem-aventuranças. Então um deles disparou um tiro, a acompanhante saiu correndo para a floresta. O primeiro disparo foi na cabeça e a derrubou ao solo. Dos seis tiros recebidos, três foram fatais e simbólicos. Uma bala atingiu o cérebro, outra seu coração e outra seu útero. Quiseram aliminar o pensar, o amor e o atuar desta mulher. Seu cérebro, seu coração e seu útero eram uma ameaça para o modelo desumano de desenvolvimento praticada na Amazônia.

Dois anos antes, Dorothy havia declarado: “As companhias florestais trabalham com uma lógica de ameaças. Elas elaboram uma lista de líderes e em seguida aparecem figuras para eliminar essas pessoas. Se eu chego a receber uma bala, saberão exatamente quem o fez”.

Fazendeiros e madeireiros celebraram com fogos de artifício e cerveja a morte de Dorothy. Nesta faixa amazônica do Pará, essas pessoas têm imposto a violência e o terror para defender seus interesses.

Através de sua vida, constatamos a existência de paradigmas por cuja defesa a existência das pessoas é ameaçada e destruída. Trata-se de integrar a espécie humana na natureza e não afastá-la, como se se encontrasse acima e não em equilíbrio com ela. Uma natureza empobrecida empobrece a espécie humana, de tal modo que para defender a vida humana também é preciso defender toda a biosfera. Isto é bem conhecido pelos povos primitivos, que sabem que sua vida depende da boa relação com a natureza, e por este motivo é necessário respeitá-la. Todo ser humano precisa aprender a administrá-la, respeitando seus ciclos, seus limites, e a sustentabilidade de produção a longo prazo.

Ecologia, justiça e paz são inseparáveis. Estes paradigmas implicam uma mudança radical no sistema econômico, na mentalidade dos chefes de Estados e dos cidadãos; uma mudança na produção que respeite a natureza e a recrie, uma relação de comunhão com ela e de amor às futuras gerações que têm direito de desfrutá-la e de obter os benefícios necessários para viver com dignidade; um amor à Mãe Terra, que está em estreita relação com Deus, verdadeira Fonte de Vida do Universo inteiro posto a serviço da felicidade de toda a humanidade, sem exceções.

Parece incrível que algo tão próprio de amor à vida, devido à cobiça, à ambição e ao afã de riqueza de uns poucos, mobilizam-se forças de destruição que acabam com vidas que somente buscam o bem, incluídos os assassinos e seus descendentes, que causam fome e suas consequências a milhões de pessoas, sendo que a natureza e a criatividade humana contam com possibilidades para erradicar a fome neste mundo.

Com Dorothy e Francisco afirmamos a necessidade de buscar “um novo começo” (nº 207); uma conversão ecológica” (nº 216), “uma cidadania ecológica” (nº 211), “um novo estilo de vida baseado no cuidado, na compaixão, na sobriedade partilhada, na aliança entre a humanidade e o ambiente, pois ambos estão umbilicamente ligados na corresponsabilidade por tudo o que existe e vive e por nosso destino comum” (nº 203-208).

A morte de Dorothy e a Encíclica recobram sentido se “caminhamos cantando”; se “nossas lutas e nossas preocupações por este Planeta não nos tiram a alegria da esperança” (nº 244); se “nosso tempo se recorda da […] firme resolução de alcançar a sustentabilidade, por acelerar a luta pela justiça e pela paz, e pela alegre celebração da vida” (nº 207).

 

[1] Fonte: https://blog.cristianismeijusticia.net/?p=12960&lang=es

secretaria.general@sanpablo.com.ar

[2] Roberto Malvezzi, 23 de abril de 2006.

[3] Houaiss: Aquele que faz investimentos comerciais ou financeiros, visando obter lucros excepcionais de acordo com as flutuações do mercado; aquele que negocia de má-fé, enganando os outros ou se aproveitando da necessidade alheia, para obter lucros acima do aceitável

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