Trabalho, migração e defesa do meio ambiente

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No decorrer do 5º aniversário da Carta Encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, publicada em maio de 2015 pelo Papa Francisco, é lícito relacionar a temática da preservação do meio ambiente com a causa, hoje tão global quanto a economia, dos trabalhadores migrantes, refugiados e prófugos. Trata-se, de resto, de outra das grandes prioridades do atual pontificado. Desde sua eleição à cátedra de Pedro, Jorge Bergoglio sempre teve presente os números, os rostos, as histórias, as tragédias e as esperanças dos que se vêm obrigados a deixar a própria terra natal, aventurando-se em solo estranho pelo sonho de uma “pátria como terra que dá o pão”, na feliz expressão do bispo João B. Scalabrini, considerado “o pai e apóstolo dos migrantes”.

Na fusão dessas temáticas – trabalho, migração e meio ambiente – será ilustrativo o confronto entre duas célebres personalidades históricas, ambas de relevante influência na lenta e laboriosa evolução do pensamento ocidental. Duas figuras muito diferentes, seja do ponto de vista da origem, seja do ponto de vista do papel que exerceram na sociedade. Vale ter em conta que ambas se encontram separadas entre si por mais de 15 séculos. Em primeiro lugar, referimo-nos a Santo Agostinho, bispo de Hipona, um dos mais importantes teólogos e representante dos Padres da Igreja, nos séculos iniciais de nossa era. Passemos a palavra ao teólogo: “Quanto a ti, come e bebe tranquilamente, mas não pises os pastos, nem turves as águas (…). Não procuremos apenas ter uma boa consciência, mas, na medida em que permitirem nossas limitações, vigilantes sobre a fragilidade humana, empenhemo-nos em nada fazer que levante dúvidas para o irmão mais fraco. Não aconteça que, comendo ervas boas e bebendo águas límpidas, espezinhemos as pastagens de Deus e as ovelhas fracas comam a erva pisada e bebam a água turva” (Cfr. Sermões de Santo Agostinho, séc. IV).

Em segundo lugar, temos uma longa citação do filósofo Karl Marx. Este desenvolve a crítica da economia política no contexto febril da Revolução Industrial, na segunda metade do século XIX. Vejamos o que escreve o pensador alemão no segundo livro de O Capital: “Na agricultura moderna, bem como na indústria das cidades, o crescimento da produtividade e o rendimento superior do trabalho são comprados ao preço da destruição e do estancamento da força de trabalho. Além disso, cada progresso na agricultura capitalista é um progresso não somente da arte de explorar o trabalhador, mas também na arte de despojar o solo; cada progresso na arte de aumentar sua fertilidade por um tempo, um progresso na ruína de suas fontes duráveis de fertilidade. Quanto mais um país, Estados Unidos da América, por exemplo, se desenvolve com base na grande indústria, mais esse processo de destruição se cumpre rapidamente. A produção capitalista não desenvolve, pois, a técnica e a combinação do processo de produção social, senão esgotando ao mesmo tempo as duas fontes de onde jorra a riqueza: a terra e o trabalhador” (Cfr. MARX, Karl; citado por GORZ, André, in: A crise e o êxodo da sociedade salarial, entrevista concedida ao IHU Unisinos, cuja publicação figura como ano 3, nº 31, 2005).

Não obstante a larga distância histórica e a diferença de contexto e de visão de mundo, os dois personagens em questão, além do confronto evidente, dialogam quanto à forma de usar com responsabilidade os recursos que a natureza põe à nossa disposição. De fato, a expressão “não pises os pastos e não turves as águas”, de acordo com o primeiro, anda de mãos dadas com a crítica do segundo sobre “a arte de despojar o solo”. Se para Marx a produção capitalista tende a esgotar “as duas fontes de onde jorra a riqueza: a terra e o trabalhador”, para Agostinho a necessidade e a urgência de nutrir-se não pode estragar as fontes de alimento daqueles que virão depois. Estão em jogo, por um lado, o cuidado com o planeta, na preservação dos distintos ecossistemas e do meio ambiente; e, por outro lado, a herança que haveremos de deixar para as gerações futuras. Nada de permitir luxos excessivos em detrimento destas últimas!

Significativa é também a distância histórico-cultural que separa as duas figuras em relação à cultura e aos desafios do mundo contemporâneo. “A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra”, lê-se na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965), do Concílio Ecumênico Vaticano II (Cfr. GS, nº 4). O afã de um crescimento econômico como panaceia para todos os males e todas as crises impõe um sistema de produção e consumo cada vez mais acelerado. Semelhante velocidade atropela o ritmo das estações determinado pela natureza. Esta não dá conta de reciclar o ar, as águas e o solo com a rapidez que as políticas econômicas os utilizam e contaminam. Desejos despertam expectativas e estas se convertem em novas necessidades. O mercado da economia globalizada, impulsionado por tais imperativos e movido pelo motor do lucro e acumulação de capital, procura responder freneticamente a esses bens múltiplos e variados, sejam eles materiais ou imateriais. Disso resulta o descompasso entre a avidez e a pressa vertiginosa da exploração, por uma parte, e, por outra, o movimento milenar, cadenciado e sábio das leis naturais.

Daí as sistemáticas ameaças e agressões à vida em todas as formas (biodiversidade), seja no que diz respeito ao equilíbrio ecológico, seja na superexploração da força de trabalho. O resultado é duplamente negativo: leva as catástrofes ambientais a extremos sem precedentes, e desenraiza multidões de migrantes e refugiados climáticos que, sem rumo e sem pátria, erram pelas estradas do êxodo, do exílio e da diáspora em busca de uma digna e justa cidadania. Por isso, não basta “apenas ter uma boa consciência” – diz Santo Agostinho – não podemos deixar que “as ovelhas fracas comam a erva pisada e bebam a água turva”. No alerta de Marx quanto a um progresso técnico desvinculado de qualquer compensação social, não podemos ser cúmplices enquanto “esse processo de destruição se cumpre rapidamente”.

Emerge com força vital, vigorosa e veemente, a chamada “questão social”, que virá a ser a espinha dorsal da Doutrina Social da Igreja (DSI) desde seu documento inaugural, a Carta Encíclica Rerum Novarum (RN), publicada pelo então Papa Leão XIII, em maio de 1891. Vale lembrar que a temática desenvolvida pela RN – “sobre a condição dos operários” – coincide com o estudo de Friedrich Engels, companheiro de Karl Marx, publicado praticamente 50 anos antes, significativamente sobre a “situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (1844). Como podemos concluir, apesar das tensões, conflitos e divergências, tanto no século IV quanto na segunda metade do século XIX, a preocupação da Igreja caminha lado a lado com os estudos e análises dos expoentes das ciências humanas. No horizonte está a defesa dos direitos e da dignidade humana, com uma clara opção pelos pobres, excluídos, migrantes e “descartáveis”.

Pe. Alfredo J, Gonçalves, cs,

Vice-presidente do SPM – São Paulo, 1º de agosto de 2020

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