Redescobrir o poder da esperança – em tempos de quarentena

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Dom José Tolentino Mendonça*

De repente e bruscamente, sem aviso prévio, a nossa vida foi sendo paulatinamente transportada para o interior de uma das imagens inquietantes de Giovanni Battista Piranesi (Veneza / *1720+1778), arquiteto humanista italiano, cujo terceiro centenário do nascimento, por coincidência, se comemora em 2020. Poucas vezes se descreveu a angústia, o efeito do caos, as intransigentes paredes de vidro do isolamento com a precisão que o artista alcançou nas suas alegorias sombrias, onde os seres humanos parecem pontos minúsculos e atribulados, ilhas desprotegidas, num mundo contaminado e relegado ao absurdo.

A visão fantasmagórica de uma ponte móvel que se recolhe, numa das gravuras mais famosas de Piranesi — determinando uma comunicação difícil, forçada, pode ser um símbolo para representar, à flor da pele, uma realidade em transformação do dia para a noite num lugar aparentemente opressivo e desespero. O sentimento geral predominante, hoje, é esse: o de que entramos, assim como Jonas no ventre da baleia, nas entranhas imprevisíveis e
confusas de um mundo irreal, de um universo paralelo, inimaginável.

Imersos num mundo desconhecido
E, cumpre reconhecer, esta situação encontra as nossas sociedades despreparadas. E não somente do ponto de vista sanitário para fazer frente à pandemia. Falo do ponto de vista da nossa experiência e daquilo que podemos conhecer, aprender e que pode nos auxiliar nesse tempo. Falo da nossa visão de mundo e da existência humana; daquilo que julgamos distante de nós e do que está efetivamente perto; do que que acreditamos ser estritamente individual e do que é coletivo; do que consideramos que nos protege e do que nos expõe; do que temos (ou tínhamos) como
completamente improvável; da consciência da nossa real força e da nossa comprovada vulnerabilidade; do medo que podemos experimentar e do esforço necessário para trazer paz à alma.

Não, não é fácil, de repente, constatar que o que sabemos, sobre nós mesmos e sobre a vida, é bem menos do que pensávamos. Não é fácil despertar de um mundo desconhecido, como o pobre caixeiro viajante, na novela de Franz Kafka. Há uns dias atrás, o escritor italiano Antonio Scurati recordava que a nossa geração tem sido uma jeunesse dorée (juventude dourada) na história europeia. Todas as coisas más (que, na verdade, nunca deixaram de acontecer) aconteciam, porém, distantes de nós e com os outros, eram tragédias que assistíamos pela televisão, bem longe de nós. Não nos dávamos conta de que a percepção que construímos das nossas sociedades – a da humanidade com mais saúde, com mais perspectiva de vida, com mais segurança e proteção, saudável e bem trajada – está
ancorada num contexto histórico que não é inabalável ou, pelo menos, não tão inabalável como
acreditávamos.

A necessidade de parábolas
Um dado curioso, no atual contexto, tem sido a necessidade de encontrar parábolas. Sem chaves interpretativas para lidar interiormente com a situação presente, assiste-se a uma corrida a alguns textos clássicos capazes não só, por exemplo, de ilustrar aquilo que vivemos, mas também de nos dar ferramentas narrativas para podermos contar, a nós mesmos e uns aos outros, o que está acontecendo. O fato de, de uma hora para outra, voltarem ao top dos livros mais vendidos, em alguns países: “A peste”, de Albert Camus, ou “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, não deixa de ser um elemento significativo. O texto de Saramago, uma poderosa e obscura parábola moral, cujo texto ele mesmo descreveu como das mais dolorosas experiências por que passou (“são 300 páginas de constante aflição”), está repleto de termos que se impuseram recentemente ao jargão dos nossos cotidianos: epidemia, infecção, quarentena, medidas coercitivas, debate ético sobre o valor da vida, carência, medo, compaixão, isolamento social. Mas não só as palavras como que ultrapassaram o estrito campo da ficção e se infiltraram em nosso domínio histórico. Saramago sublinha na obra, com genial perspicácia, os fantasmas e os pesadelos que é preciso evitar. Porque, não nos iludamos, tudo pode ser sempre pior. Nesse sentido, o seu romance permite uma leitura preventiva em relação à realidade. Por sua vez, o romance de Albert Camus, publicado em 1947, constitui uma incisiva
reflexão sobre o mal, e certamente ali, como pano de fundo, está a sombra macabra do nazismo, denunciado como a “peste” que encurralou, naqueles anos, a nossa humanidade. Mas Camus escolheu um médico como protagonista da sua simbólica crônica de resistência. E isso certamente permite uma ligação direta com o presente, onde queremos sobretudo ouvir o que pensam os epidemiologistas, os infectologistas, os clínicos em geral.

De repente, o doutor Bernard Rieux, que desde aquela manhã de abril em que, saindo do consultório, se torna o protagonista do que acontece em Oran, Argélia, é um interlocutor claro e familiar daquilo que também experimentam qual nos faltam ainda narradores. E há três coisas que aprendemos ao ouvir o Dr. Rieux contar na obra “A Peste”. A primeira delas é que a sobrevivência, diante de surtos infeciosos desta dimensão, passa por adotar os padrões sanitários e seguir escrupulosamente, de forma continuada, as regras terapêuticas estabelecidas de isolamento social. A segunda é que a declaração de estado de peste e de cerco à cidade também têm informações úteis à alma, pois colocam em questão aspetos da condição humana e do seu destino. A terceira, e não menos decisiva, é que, no meio de toda esta tribulação, abrem-se imprevistos espaços para a fraternidade entre os seres humanos.

Podemos reaprender muitas coisas

Parece paradoxal, mas o tempo presente representa também uma oportunidade para nos reencontrarmos. Confinados a um isolamento compreendemos talvez melhor o que significa ser – e ser de forma radical – uma comunidade. A nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: todos estamos nas mãos uns dos outros, todos experimentamos como é vital esta interdependência, esta trama feita de reconhecimento e de dom, de respeito e solidariedade, de autonomia e relação. Todos esperam uns dos outros e estimulam-se positivamente a que façam a sua parte. Todos se engajam, participam e colaboram. Os cuidados individuais, que somos chamados
a observar, não são a expressão de uma fobia ou do próprio interesse apenas, como destinados a nos enclausurar na torre de marfim do nosso ego. São, antes, a forma de colaborar para um bem maior, de colocar os outros no centro, de sacrificar-se por eles, de privilegiar o bem comum. Esta é a hora em que podemos, de fato, reaprender muitas coisas. Podemos reaprender a estar em nossas casas e comunidades, mas também a sentir que depende de nós o  nosso prédio, a nossa rua, o nosso bairro, a nossa cidade, o nosso país, dando sentido efetivo às palavras, tantas vezes destituídas dele, como são as palavras proximidade, vizinhança, humanidade, solidariedade, povo e
cidadania. Podemos reaprender a utilizar as redes sociais não só como forma de divertimento e de fuga, mas como canais de presença, de cuidado e de escuta. Sem nos tocarmos, podemos reaprender o valor da saudação, o estímulo de um cumprimento, a incrível força que recebemos de um sorriso ou de um olhar. Sem que os nossos braços se estendam na direção uns dos outros podemos nos abraçar afetuosamente, como já o fazíamos ou de um modo mais intenso ainda, transmitindo nesses abraços reinventados o encorajamento, a hospitalidade, a certeza de que
ninguém será deixado só. Sem nos conhecermos podemos finalmente reaprender a não relegar ninguém à indiferença ou a não tratar os nossos semelhantes como desconhecidos. Nenhum ser humano nos é desconhecido, pois sabemos por nós mesmos o que é um ser humano, o que é esse pulsar de medo e de desejo, essa mistura de carência e de generosidade, esse mapa que cruza o pó da terra com o pó das estrelas.

A distância e a proximidade

Conhecemos o significado de proximidade e de distância, e, para dizer a verdade, precisamos de ambas. São elementos de comprovada importância na arquitetura do que somos: sem uma ou sem outra nós não somos quem somos. Sem a proximidade primordial nem seríamos gerados. Mas também sem a separação e a distinção progressivas a nossa existência não teria lugar. Na linguagem simbólica do livro do Gênesis, Deus cria o homem amassando-o da argila da terra e oferecendo-lhe o seu próprio sopro, mas depois deixa o casal humano a sós no jardim para que a aventura da liberdade possa ter início. Do mesmo modo, cada um de nós, foi chamado a construir o seu mundo interno no balanço destas duas palavras: fusão e distinção. E por meio delas descobrimos, na prática,
o significado do amor, da confiança, do cuidado, da criação e do desejo. É verdade que no campo pessoal e social há muitas distâncias que são distorcidas formas de afirmar barreiras, de inocular com o vírus ideológico da desigualdade o corpo comunitário, de desnivelar a existência comum com assimetrias de toda a ordem (econômicas, políticas, culturais, etc). E, devemos reconhecer igualmente que tantas formas de proximidade não passam de prepotência sobre os outros, exercício doentio do poder, como se os outros fossem propriedade nossa. A distância e a proximidade precisam, por isso, de purificação. Este tempo em que repentinamente ficamos todos mais perto
(penso nas famílias em quarentena numa casa, 24 horas por dia) e todos mais separados (é recomendado para o contato interpessoal que se mantenha, pelo menos, 1 metro de distância) pode representar uma oportunidade para redescobrir que a proximidade e a distância garantem a qualificação ética da existência humana.

As modalidades do tempo

O que somos nós se não escravos do tempo? Vivemos sob a ditadura do tempo cronológico: aquele tempo utilitário e voraz, aquele contador ininterrupto que não dorme, aquele corredor que ninguém consegue parar. Estamos literalmente sendo engolidos pelo tempo, como a sugestiva imagem da mitologia diz ser a prática de chronos, o invencível rei dos titãs que, sem piedade, devorava os próprios filhos. E estamos nós, agora, envolvidos nesse processo de devoração, correndo na  cansativa corrente dos dias, acreditando que nada pode parar, temendo qualquer abrandamento ou pausa e deixando com isso adiado o coração para outro século; e, com isso, adiando a vida para outra vida. Estamos sempre a transferir para o fim de semana, ou então para as férias, ou para uma
ocasião propícia que nunca chega. Porque não se espicha o tempo. Mas os inconformados gregos, a despeito do Chronos, tinham uma outra concepção de tempo para a qual reservavam o termo kairós.
No Chronos predomina uma visão quantitativa do tempo, uma espécie de contabilização vertiginosa, uma linha inalterável contínua que nos aprisiona na sua teia. E uma coisa sabemos: não é essa experiência de tempo que dará alma ao mundo. O tempo, porém, pode também ser experimentado como uma realidade qualitativa, isto é, pode ser finalmente definido como “o tempo de”, “o tempo para”. O que se sublinha não é tanto a duração, mas o momento oportuno, propício, o ponto determinante, a hora do acolhimento da graça capaz de alterar nossas referências de mundo. Se assim acontecer, o Chronos foi transformado em kairós.

De quarentena a tempo gratuito
No imaginário contemporâneo o termo “quarentena” remete-nos a mundos distantes, que a modernidade superou. Quanto muito, podia se aplicar a alguns poucos casos individuais, onde a gravidade das patologias impunha essa antiga prática de saúde, de segurança. A ideia de metrópoles inteiras ou de países em quarentena constitui uma absoluta anormalidade. Por isso, não é de se admirar que a primeira reação seja a de medo nas formas mais diversas de expressão de claustrofobia exacerbada. Aqueles que, por motivações religiosas ou por escolhas conscientes de
vida, aprenderam a tornar fecunda e solidária a própria solidão fizeram antes um percurso iniciático, educaram o seu coração nesse sentido, mas seguramente se posicionar na contramão. De fato, essa educação não é comum numa sociedade onde os maiores estímulos estão na direção contrária: no escapismo, na fuga, no consumismo, na vida massificada e dispersa. Por isso, somos convocados como sociedades a uma experiência pedagógica.

Que a quarentena não seja só um recurso forçado,do qual vemos apenas os aspetos negativos, mas que com um esforço hercúleo, nos ajude a transformar o Chronos em kairós. Passamos uma vida inteira repetindo que “time is money” e não nos damos conta do custo existencial dessa mentalidade. Para nós pode ser um tempo para reviver e resgatar algo que estávamos perdendo; aquele amor que dificilmente tinha voz e vez; a gratuidade reprimida e que agora podemos saborear e desfrutar. A nós cabe olhar para a quarentena não apenas como um congelamento
prejudicial da vida que nos deixa aprisionados, relacionando de maneira doentia o que estamos a perder. Sairemos mais amadurecidos se a aproveitarmos como um dom, como um espaço plástico e aberto, como um tempo para ser.

Não basta encher o frigorífico

A nossa segurança não pode vir de despensa bem abastecida ou de geladeira abarrotada. A vida é mais do que a materialidade necessária à sobrevivência. É também isso, mas é mais do que isso. O tempo que vivemos representa também uma oportunidade para refletir sobre o que, de fato, nos sacia. Via de regra, nos alimentamos de tantos artifícios, que acabamos reduzindo a vida a um fast-food, de preferência sem pensar muito. É que nos alimentamos de hábitos rotineiros, quem sabe, sem sentido; de ideias feitas que não deixam lugar à arte da escuta e da descoberta; de automatismos que pairam como pura abstração; de imagens filtradas que reduzem sempre mais a realidade a algo
plano, esvaziando-a da sua natureza simples, polifônica e concreta; de palavras que, mais do que uma real declaração de presença, se parecem a uma estratégia que nos subtrai às chamadas sucessivas que a vida faz. Recordo o discurso sapiencial de Jesus e como esse restabelece o contato da nossa realidade com as suas fontes mais profundas: «Por isso é que eu lhes digo: não fiquem preocupados com a vida, com o que comer; nem com o corpo, com o que vestir. Afinal, a vida não vale mais do que a comida? E o corpo não vale mais do que a roupa? Olhem os pássaros do céu:
eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam em armazéns. No entanto, o Pai que está no céu os alimenta. Será que vocês não valem mais do que os pássaros? Quem de vocês pode crescer um só centímetro, à custa de se preocupar com isso? E por que vocês ficam preocupados com a roupa?
Olhem como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. Eu, porém, lhes digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles. Ora, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é queimada no forno, muito mais ele fará por vocês, gente de pouca fé! (Mt 6, 25-30). Num dos tempos mais obscuros do século passado, uma jovem holandesa, Etty Hillesum, escreveu num campo de concentração este comentário sobre esse Evangelho de Mateus: “Uma vez escrevi num dos meus diários: ‘gostava de tocar com a ponta dos dedos os contornos da época’. Nessa altura estava sentada sem saber bem como conduzir a vida; o tempo chega a nós com um grande poder de atuar em novas sensibilidades. E então, de repente, deparei-me no foco do sofrimento humano numa das sua múltiplas faces espalhadas por toda a Europa. E foi aí que eu experimentei isto   inesperadamente: a partir dos rostos das pessoas, de milhares de gestos, de pequenas manifestações, de biografias, comecei a interpretar estes tempos…
Gostava muito de viver os lírios do campo. Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo. Agora, só restamos eu e Deus. Não há mais ninguém que me possa ajudar. (…) Não me dá nada a sensação de empobrecimento, antes uma sensação de riqueza e tranquilidade: agora só restamos eu e Deus”. A grande lição de vida de Etty Hillesum é a da resistência e da alegria. Um de seus legados mais importantes foi o desafio de alargar sempre mais os espaços de alegria e de paz nos caminhos do nosso tempo. O que significa sermos  capazes de olhar os lírios do campo e as aves do céu? Significa adotar uma atitude contemplativa.
Precisamos olhar, mas não apenas como habitualmente o fazemos, pois a maior parte das vezes o nosso olhar morre junto aos sapatos. Somos desafiados a um olhar que vá além de nós, que nos ultrapasse, que supere os limites do que planejamos, que transcenda a fronteira das nossas preocupações imediatas, que se projete para além do que sozinhos conseguimos ver… porque a vida não se resolve apenas com aquilo que trazemos ou conseguimos, mas sim no diálogo misterioso entre a nossa escala e a escala mais ampla que a própria vida é; no diálogo entre o que surge como
conquista e o que brota como inexplicável dom; na interação entre o aqui e o agora e o que é da ordem do eterno.

As histórias de amor a escrever

No meio da emergência que vivemos, não podemos esquecer belíssimo testemunho humano dos cuidadores. Eles são os heróis dessa história coletiva. 
E são milhões que, de forma anônima, e com um extraordinário sentido de abnegação, mantêm abertas fábricas e serviços, continuam a produção de alimentos e de bens indispensáveis, cuidam da segurança e, claro, nos hospitais combatem por todos nós na primeiríssima linha. Enumero três histórias minúsculas no universo do bem e da dedicação que, nestes dias tão difíceis, também estão sendo construídos.

No sábado fui à pequena padaria do meu bairro. É o proprietário que atende no balcão, um senhor dos seus setenta e poucos anos, um olhar cheio de cordialidade, um humor fino. Vi-o, como o nunca vi, desolado, melancólico, mergulhado em profundos pensamentos, exausto. Perguntei-lhe se a padaria continuaria aberta. E ele confessou que por ele já a teria fechado. Mas depois começa a pensar nos clientes, nas pessoas que serve há tantos anos, muitas delas idosas como ele: como farão, se não há outra padaria nas redondezas!

Outra história eu a li no jornal. Uma senhora ligou para o posto da polícia do seu quarteirão, que naturalmente continua aberto, apenas para fazer esta pergunta: “E vocês como estão?”

A terceira é contada, sem palavras, por uma fotografia que mostra os bastidores de um hospital. Uma enfermeira
adormecida com a cabeça em cima de um teclado do computador. Tem os óculos e a máscara colocados no rosto. Os braços caídos ao longo do corpo, sem nenhum apoio. É uma imagem comovedora, no seu desamparo extremo, porque se percebe tudo. Há quantas horas aquela mulher não dormia? E que dimensão deve ter o cansaço, que peso é necessário atingir para fazer tombar assim um corpo?

Há quem diga que a geração que vive o turbilhão desta pandemia olhará inevitavelmente para a vida de outra maneira.
Esperemos que sim. Mas que na equação, que porventura promoverá uma mudança de mentalidade, entre não só o poder desconhecido do medo e da urgência, que nos faz relativizar tanta coisa. Que saibamos considerar devidamente todas as histórias de amor que estão sendo escritas, a começar por esta inteira multidão de profissionais e de voluntários que aproximam da nossa experiência hodierna a inesquecível parábola do bom samaritano.

As mãos sustentam a alma

Uma das esculturas mais conhecidas de Rodin revela, numa primeira abordagem, uma impressionante simplicidade. Trata-se de uma composição em pedra constituída por duas mãos. Na verdade, duas mãos direitas, de duas pessoas diferentes cujos braços se entrecruzam e se esticam para que os dedos, no ponto mais alto, se toquem, desenhando a forma de um arco. Algo bem elementar, portanto. A arte revela – e, desse modo, nos remete a uma outra visão da obra, quando é anunciado o seu título. Primeiramente, Rodin pensou denominá-la “A arca da aliança”, mas optou por chamá-la “A catedral”. O que é uma catedral? A escultura de Rodin pode ajudar-nos na necessidade atual de uma resposta. Uma catedral não é apenas um território sagrado exterior onde os nossos pés nos levam. Nem é apenas um templo fixado num determinado espaço. Nem apenas um porto de abrigo que os mapas indicam. Uma catedral também se alcança com as nossas mãos abertas, disponíveis e suplicantes, onde quer que nos encontremos. Porque
onde está um ser humano, ferido de finitude e de infinito, está o eixo de uma catedral. Onde podemos realizar a experiência vital de busca e de escuta para a qual a imanência não é resposta. Onde as nossas mãos podem se erguer para  o alto em desejo, urgência e sede. Esse será sempre um dos eixos da catedral. O outro eixo é o mistério de Deus que o desenha, avizinhando-se de nós e segurando-nos, mesmo quando não nos damos conta, mesmo quando o silêncio, o duro e pesado silêncio, parece a verdade mais palpável. Foi Pascal que escreveu que “as mãos sustentam a alma”. Hoje precisamos de mãos – mãos religiosas e outras mãos, que sustentem a alma do mundo e que mostrem que a redescoberta do poder da esperança é primeira oração global do século XXI.

*Dom José Tolentino , cardeal, poeta, teólogo, professor universitário português e eminente intelectual católico. Atualmente é o Prefeito do Arquivo Apostólico e da Biblioteca Apostólica no Vaticano, Santa Sé, em Roma.

https://expresso.pt/coronavirus/2020-03-22-Redescobrir-o-poder-da-esperanca-com-Jose-Tolentino-Mendonca-em-tempos-de-quarentena

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