– Doutor, acho que peguei uma dessas gripezinhas chatas que não querem sarar.
– Não, cara Terra, sua febre está muito alta, e isso causa preocupação.
– Será que peguei algo mais grave? Todos os sintomas são de gripe.
– Sim, os sintomas são os mesmos, mas podem enganar. Precisamos fazer alguns exames
técnicos e mais apurados; enquanto isso, vou receitar qualquer analgésico para a dor…
– Então, Doutor, estou ansiosa pelos resultados. O que revelaram os exames? Nestes dias
senti que aumentaram as dificuldades de renovar o oxigênio da atmosfera.
– Infelizmente, nada de bom! A análise revelou a presença em seu corpo de um vírus novo,
absolutamente desconhecido. E o que é pior, altamente contagioso. Ele ataca os pulmões
que devem purificar o ar e pode comprometer todo o ecossistema da vida.
– E qual o remédio para esse estranho hóspede? Espero que tenha cura.
– Lamento, mas não há um remédio específico. Você vai ter que parar de girar
e passar algum tempo em quarentena, quem sabe isso ajudará a sentir-se melhor…
– Que bom revê-lo, Doutor, acho que já me sinto melhor. Posso voltar à minha órbita diária.
– Ainda não. A situação é mais grave do que parecia no início. O vírus já começou a se espalhar
por todo seu corpo. Milhares de células estão sendo contaminadas, e centenas já morreram.
– Morte? Meu Deus, a coisa é tão séria assim! Será que tenho anticorpos contra esse vírus?
– As notícias são sombrias. O contágio se alastra por seus órgãos e seus membros.
– Santo Deus, que cruel! Como pode esse vírus, que nem se vê, fazer tanto estrago?
– Por isso mesmo! Além de ser invisível, ele se esconde em células assintomáticas
e, desse jeito, circula livremente por todo seu organismo, ceifando célula após célula…
– Doutor, a epidemia virou pandemia. A morte avança por todo meu corpo. Mais trágico do que eu
poderia imaginar. Nunca se viu uma coisa igual. Parece que se combate uma nova guerra mundial.
– Guerra mundial, essa é a palavra. O potencial do inimigo, sempre invisível, só faz crescer.
– Mas, afinal, de onde apareceu esse vírus? De onde vem sua força tão contagiosa e tão letal?
– Olha, cara Terra, aqui eu vou deixar de lado a minha especialidade médica. Tenho a impressão
que seu corpo anda meio fragilizado. O sistema de produção capitalista tem como motor o lucro
e a acumulação de capital. Daí a devastação de tuas matas originais, a contaminação da atmosfera,
bem como a poluição de teus rios, lagos e mares. Uma tragédia anunciada.
– Verdade, Doutor, sinto-me fraca, cansada e ainda com febre. Febre que se revela na deterioração
dos diversos ecossistemas e num vaivém sem igual das células por todo corpo; outras estão inativas
pela desocupação e muitas, milhões, estão enfraquecidas pela pobreza, a miséria e a fome….
– Como está hoje, Sra. Terra? Sua febre segue nas alturas, o que está acontecendo?
– Sigo doente e à beira da UTI. Nesta crise, onde vírus e crise econômica se misturam,
as células se agitam sobre meu corpo. Provocam tensões, conflitos, turbulências e guerras.
A violência tem redobrado. As células mais fortes oprimem e exploram as mais fracas.
O resultado é que concentração de renda e exclusão social andam de mãos dadas.
A desigualdade social cresce de forma exponencial, exorbitante, estridente.
“Ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”, dizem …
– Olha, cara Terra, sou especialista em infectologia. Pouco entendo de sociologia e economia.
Mas me arrisco em dizer que a febre de seu corpo tem muito a ver com uma reação do
organismo aos ataques devastadores que você tem sofrido ao longo da história humana.
– Verdade! Além da fraqueza física e sistêmica, sinto-me emocional e psiquicamente abalada.
As células de meu corpo, em vez de me proteger como fonte de vida, agem como sanguessugas.
Chupam todo meu sangue: minerais, vegetais, animais, ar, sol, águas e outras riquezas.
O meio ambiente se ressente e reage. Por isso dizem que a natureza não perdoa!
– Tem razão, dá para entender a insistência do Papa sobre o “cuidado com nossa casa comum”.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 8 de abril de 2020