Hugo Sarubbi Cysneiros de Oliveira
Advogado da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil – ANEC
Alguns intrigantes pronunciamentos de Parlamentares diretamente envolvidos com o trâmite da PEC 287/2016 (a da Reforma da Previdência) dão a entender que alguns enxergam nos “privilégios fiscais” dados às entidades certificadas beneficentes de assistência social (popularmente chamadas de filantrópicas) uma das razões do tal “déficit previdenciário”.
Querendo acreditar na boa-fé de quem assim se pronuncia, resta imaginar que essa impressão – de tão desarrazoada e objetivamente atentatória às evidências – decorre do completo desconhecimento do dito setor “filantrópico”, aliado à desinformação quanto às vantagens (inclusive financeiras) que o Estado nutre em sua relação com as entidades certificadas.
Assim, o anunciado ataque das autoridades às entidades certificadas beneficentes de assistência social por meio da Reforma da Previdência constituirá um irresponsável “tiro no pé”, sem precedentes, cujos prejuízos agravarão ainda mais o vulnerável e ineficiente sistema estatal de amparo socioassistencial.
Recentemente, foram divulgados os resultados de duas pesquisas que, de maneiras distintas, se preocuparam com a “entrega” realizada pelas entidades educacionais e com o “valor” do que é apresentado ao final do processo.
Explica-se, desde já, que as expressões “entrega” e “valor” aqui são utilizadas deliberadamente em um sentido comumente visto no meio corporativo. Em sintética e simplificadíssima ilustração, a primeira refere-se ao resultado final alcançado, seja do bem fornecido, seja do serviço prestado; já a segunda contempla aspectos tangíveis e intangíveis do que foi entregue.
Assim, os dados revelados pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e pela pesquisa “A contrapartida do setor filantrópico para o Brasil”, promovida pelo Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (FONIF), escancaram a diferença abissal que há entre as instituições públicas e privadas educacionais (pelo menos em tal nível de ensino) e apontam para a continuidade – com viés de subida – da distância vista neste penhasco que separa os dois setores. Reforça-se, desse modo, a necessidade de uma profunda reflexão sobre o que a sociedade brasileira está disposta a fazer para, de uma vez por todas, justificar com ações concretas o histórico discurso em prol da educação.
Como já salientado, os levantamentos são distintos, seguem metodologias e propósitos igualmente diferentes, mas – na prática – atestam que é do setor privado o protagonismo nas melhorias da “entrega” e do “valor” percebidos na missão de educar neste país.
Todos sabemos que, lamentavelmente, o gargalo diagnosticado (e que, diga-se de passagem, não representa nenhuma maior surpresa) é ainda mais cruel para aqueles que sequer imaginam ter acesso ao setor privado por meios próprios de financiamento.
Apenas para fins de lembrança, pelos dados do Enem 2015, entre as 100 primeiras escolas colocadas no ranking, 97 são privadas e 3 públicas (todas três federais, inclusive). Já entre as 1.000 melhor posicionadas, apenas 49 são públicas (performance que piorou se comparada com o ranking de 2014, pois lá foram 93).
Assim, a pergunta que se impõe é: que alento pode ter uma família de escassos recursos na busca de uma educação de qualidade para seus filhos no Brasil?
Aos menos favorecidos não restam muitas opções: ou são contemplados com uma vaga nas raríssimas escolas públicas que conseguem manter um padrão aceitável de ensino, ou encontram em instituições privadas bolsas integrais ou parciais que tornam alcançável o acesso a uma educação de qualidade.
Os números são sintomáticos: no Brasil, falar em escolas privadas com políticas institucionais perenes de atendimento a alunos bolsistas – mormente em razão do perfil socioeconômico – significa pensar, em sua gigantesca maioria, nas instituições sem finalidade de lucro. Além disso, falar em escolas sem finalidade de lucro neste país implica em mencionar – também em sua maioria – instituições confessionais. Finalmente, tratar de escolas sem finalidade lucrativa no Brasil – confessionais ou não – culmina em falar nas entidades certificadas (comumente chamadas de filantrópicas).
A pesquisa do FONIF joga luzes na “entrega” e no “valor” alcançados pelas entidades certificadas, mostrando que os benefícios gerados pelos serviços prestados pelas instituições que se valem de tal política suplantam, e muito, a aparente renúncia fiscal do poder público. Em números frios, é um “ótimo negócio” para cofres estatais abrir mão de uma determinada cifra, pois esse mesmo Estado recebe de retorno o mesmo valor multiplicado e já aplicado em sua devida finalidade.
Realizada pela DOM Strategy Partners, segundo a metodologia Intangible Assets Management (IAM), a referida pesquisa (valendo-se de dados divulgados pelo próprio governo federal) mostra, em apertada síntese, que, para cada R$ 1,00 (um real) não recolhido em razão da imunidade das filantrópicas, R$ 5,92 (cinco reais e noventa e dois centavos) são devolvidos sob forma de serviços e benefícios à sociedade.
São mais de 2,2 milhões de jovens que têm a chance de estudar em instituições filantrópicas reconhecidas pelos mais rigorosos rankings e avaliações do país, sendo 600mil deles bolsistas, da educação básica à superior; na área da assistência social, o setor filantrópico responde por 62,87% das vagas privadas ofertadas (com atendimentos 100% gratuitos); na saúde, 53% dos atendimentos SUS são realizados pelas Santas Casas e hospitais filantrópicos, que, aliás, representam a única opção de atendimento em 990 municípios do Brasil.
Enfim, trata-se de um setor que reúne quase 9.000 entidades certificadas – rigidamente já fiscalizadas pelo poder público por meio relatórios e auditorias em suas contas, que realizam cerca de 161 milhões de atendimentos anuais e geram 1,3 milhões de empregos.
Em suma, para além do emblemático argumento de que a imunidade das contribuições sociais e dos impostos é conferida a tais entidades por força de mandamento constitucional, é fundamental lembrar que tal desoneração não se dá sem contrapartidas.
Não se trata de nenhuma espécie de privilégio! Ao contrário do que ocorre com outras espécies de desonerações que atingem os chamados cofres do sistema da Previdência Social, tem-se aqui uma renúncia (constitucionalmente prevista, é bom lembrar) que representa 3% da arrecadação total previdenciária, cerca de 10 bilhões de reais, que se revertem em quase 60 bilhões de serviços prestados aos mais necessitados!
Ocorre que, em tempos de crise, esta acompanhada de uma aguda diminuição da arrecadação fiscal, os atores governamentais parecem se mostrar cada vez menos sensíveis aos resultados de quaisquer outras políticas que não a fazendária.
É frustrante perceber que os Ministérios certificadores (das áreas da educação, da saúde e da assistência social) cedem espaço para o imediatismo míope das razões e das prioridades dos agentes arrecadadores.
Paralelamente ao fato de que o Estado insiste em se valer de um aparato normativo cuja inconstitucionalidade é flagrante (vide os votos já emanados nas ADI´s em curso), não há como ignorar a evidente lógica financeira/fazendária/arrecadatória que norteia as políticas públicas socioassistenciais.
Quando, por exemplo, lembramos que ainda pende de regulamentação o cômputo dos benefícios complementares previstos na lei nº 12.868/2013; ou que os números de indeferimentos de renovação ou concessão dos Certificados de Entidades Beneficentes (CEBAS), tendo por lastro motivações absolutamente nebulosas – ainda que supostamente técnicas – multiplicam-se dia-a-dia; ou que os sistemas eletrônicos de registro de dados simplesmente não funcionam; ou que as tais “calculadoras” não ficam prontas; ou que as entidades esperam anos pelas respostas de seus processos administrativos; ou, ainda, que o Estado patrocinou o processo legislativo que tornou irretroativos os efeitos da emissão do CEBAS (uma tremenda injustiça!), há muitos motivos para se preocupar.
As entidades têm se esmerado em adotar as melhores práticas de transparência na gestão de suas atividades, clamam por diálogo com as autoridades públicas, são testemunhas de que sua missão maior é a de construir uma sociedade mais justa e solidária, mas obviamente dependem de uma via de mão dupla para atingir tais objetivos.
Que os números das recentes pesquisas acima mencionadas inspirem as autoridades a perceber que não é pela via da intimidação e do enfraquecimento das instituições privadas, em especial das filantrópicas certificadas, que as crianças do nosso país se verão melhor acolhidas e com melhores perspectivas.
Usar a Reforma da Previdência como braço forte da sanha arrecadatória do Estado, às custas da inviabilização do funcionamento das entidades certificadas beneficentes de assistência social, pode até ser um expediente que atenda a determinados e camuflados interesses, mas é certo que não coincide com as necessidades dos carentes e dos desassistidos, que apenas contam as “filantrópicas” para aceder a serviços educacionais, de saúde e a projetos e programas socioassistenciais.