Menina de dez anos

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Perdoa-nos a todos e todas, Menina de dez anos,

pelo sofrimento que cedo se abateu sobre teu corpo e tua alma;

há quatro anos, vítima no interior mesmo do “lar sagrado” que a devia proteger,

o que resultaria numa gravidez indesejada, com suas consequências unilaterais.

Não, não queremos saber teu nome, tua família nem teu endereço;

tampouco desejamos chafurdar em teus segredos e mistérios de criança,

precocemente atropelados pela trágica trajetória, em espiral e crescente,

do uso e abuso, estupro e violência contra a mulher – cujo fim é o feminicídio.

 

Perdoa aos que, moralizantes, insistimos em apontar o dedo em riste,

aos que, em lugar do criminoso, tentamos linchar a vítima inocente e indefesa,

e aos que, de tua infância rota e interrompida, fazemos um espetáculo.

Sentados e protegidos confortavelmente nos sofás de nossas casas,

acostumamo-nos a consumir, através dos jornais, telejornais e Internet,

histórias sinistras e macabras, que tendemos a engolir e naturalizar

como se fossem notícias normais do dia-a-dia, da mesma forma que se consomem

roupas e calçados, bolsas e viagens, gols e futebol, celulares e falsas notícias.

 

Na pessoa do tio homem, macho e covarde, física e moralmente miserável,

logo medroso e desconhecido, foragido da lei e das responsabilidades;

perdoa-nos o comodismo da banalidade e da impotência, ambas hipócritas.

Perdoa-nos quando, não obstante a clara evidência em contrário,

longe e ao mesmo tempo perto dos acontecimentos que nos circundam,

sentimo-nos e agimos como se fossemos protagonistas e sujeitos da história,

um tecido social, político e econômico que, à revelia dos “sábios e conscientes”

é costurado diariamente por nomes e rostos invisíveis, “descartáveis” e silenciosos!…

 

No mapa da existência, seguimos nos achando uma espécie centro ou epicentro

das coisas e dos fatos, das relações e polêmicas, da continuidade e ruptura:

ponto de convergência do cotidiano agitado, voraz e veloz, das vidas frenéticas;

redemoinho sem norte, destino ou direção, girando em falso e em vão,

Sempre em busca de ventos fortes, raios furiosos e chuvas torrenciais.

Novidades febris que venham sacudir a letargia e trazer sentimentos e sensações,

capazes de preencher o vazio inócuo desta ilha do aqui e agora em que nos instalamos,

onde o barco dos “tempos modernos” encalhou num arquipélago de fantasias

de uma geração volátil e virtual, efêmera e transitória, mas em busca de novo rumo,

abandonada, sedenta e solitária no hoje imediato, desligada do passado e do futuro,

sem saber ao certo o que fazer no presente – com seus apelos, clamores e desafios.

 

Sós e embrutecidos, ébrios ou eufóricos – farejamos e nutrimo-nos de escândalos;

por isso, Menina de dez anos, perdoa-nos por que não sabermos o que fazemos!

Nosso silêncio e indiferença favorecem a ação criminosa dos tios perversos,

e que, perversamente, se ocultam ao abrigo da “inviolabilidade do espaço familiar”;

a apatia parece paralisar nosso cérebro e nossas mãos duras e cerradas;

perdoa-nos e ensina-nos a despertar para a realidade viva, nua e crua

das ruas e becos, dos porões e periferias, dos “infernos humanos” sobre a terra,

em vista de participar na construção de um “céu humano-divino”, onde ninguém será excluído!

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 17 de agosto de 2020

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