Com temor e tremor, lenta e dolorosamente, o mundo atravessa o túnel escuro da pandemia do Covid-19. E, em consequência, segue a quarentena do isolamento social. Neste período de crise, dor e morte, onde predomina a angústia e a incerteza, a impotência e a ansiedade, duas janelas se abrem de forma inusitada para a relação com o mundo e com as outras pessoas. A bem da verdade, ambas as janelas já se encontravam abertas, mas agora substituem a porta como ponte com a rua e os demais seres vivos, até mesmo os familiares, parentes e amigos mais próximos. Por elas, passa hoje o fio invisível que une nossos laços humanos.
A primeira janela, literalmente falando, é aquela de nossas casas e de nossos quartos, para quem pode gozar o luxo de um quarto individual. Algumas dispõem até mesmo de uma pequena varanda como continuação da sala. Em outros tipos de moradia, nos bairros mais pobres e precários, pelas periferias e favelas, a janela praticamente está colada com a do vizinho. Dessas janelas, hoje mais escancaradas do que nunca, emanam sabores e saberes, sons e cores, que antes pareciam represados. Os gestos, a música e a conversa ganham novo significado. O risco de sair à rua e às praças, e de escutar o rumor ensurdecedor da cidade, confere maior relevo às palavras que trocamos através da janela. O perigo do contágio no “lado de fora” aumenta a intimidade no “lado de dentro”, bem como a necessidade de comunicar essa riqueza de novas experiências, novos sentimentos e novas emoções.
A segunda janela é virtual e rima com tela: de televisão, de computador, de smartfone ou celular. O uso das redes sociais, em especial, se intensifica, ao ponto de sobrecarregar e saturar os sistemas da Internet. Mensagens e imagens familiares e amigas, moralmente sérias, sadias, solidárias e construtivas, navegam na contramão do que se convencionou chamar de “fake news”, ou informações erradas. Diferentemente dos meios de comunicação ditos “oficiais”, pela Internet é mais fácil veicular polêmicas e ataques, confrontos e agressões, insultos e mentiras. Quando o encontro não conta com o face-a-face ou o olho-no-olho, frequentemente deixamos de lado o diálogo e caímos no monólogo, onde o ódio tem a primazia. Nesta quarentena felizmente, e mesmo no mundo virtual, temos visto a cultura da paz e da convivência se sobrepor à cultura do ódio. A dimensão negativa que marca tão fortemente a comunicação pelas redes virtuais, dá lugar a uma dimensão positiva que faz nascer novas aberturas nas relações humanas.
Ambas as janelas – aquela propriamente dita e a virtual da telinha – pavimentam alternativas inéditas para as relações futuras, sejam estas interpessoais e familiares, comunitárias e sociais, políticas e culturais. Novas perspectivas se descortinam no horizonte, como se o túnel sombrio desta pandemia nos obrigasse a acender pequenas velas para iluminar o caminho a escolher. Afinal, tanto mais escura é a noite, tanto maior será o brilho das estrelas. De forma consciente ou inconscientemente, a quarentena nos ensina a depurar o relacionamento, a purificar a cultura e seus valores, e a escutar outras vozes que antes deixávamos de escanteio.
Desenha-se uma convivência social onde a experiência de cada um, os sentimentos e emoções encontram maior espaço na sociedade humana. Os bens imateriais da amizade, da relação e da solidariedade, por exemplo, tendem a superar os bens materiais que por tanto tempo nos têm escravizado. O confinamento nos leva ao retiro, ao deserto, ao silêncio e à escuta – e tudo isso, por sua vez, nos conduz a importantes escolhas. Aprendemos a distinguir aquilo que é supérfluo daquilo que é essencial. O que é secundário do que é absolutamente inegociável. Em outras palavras: que valores temos cultivado no jardim de nossa casa e de nossa vida? Que valores queremos cultivar depois de passar por esta noite tenebrosa? Diz o ditado popular: “quem semeia vento, colhe tempestade”! As janelas supracitadas ajudam a transfigurar o nosso olhar tanto sobre nós mesmos e sobre as coisas e as pessoas, quanto sobre a vida, a natureza e o universo como um todo. Muita coisa podemos superar em vista de um mundo melhor!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 13 de março de 2020