Fragmentos de espiritualidade em tempos de pandemia (III)

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O espectro do Covid-19 abateu-se sobre o planeta da economia globalizada, o que explica a denominação de pandemia. A sociedade do espetáculo (Guy Debord) e do hiperconsumo. Essas características, combinadas, acabam por engendrar um individualismo exacerbado. Daí o paradoxo da modernidade tardia ou pós-modernidade: Ao mesmo tempo que os meios de comunicação, em especial o universo virtual da Internet, unem o mundo inteiro, também nos isolam uns dos outros. Criam, simultaneamente, as multidões metropolitanas e a solidão do apartamento. Erguem-se muros em lugar de pontes.

Nesse contexto de aglomeração e anonimato, chega o coronavírus como hóspede indesejado. E este inesperado “inimigo comum”, se por um lado leva as autoridades sanitárias e sensatas a determinar o distanciamento social, por outro, de alguma forma aproxima as pessoas que se mantêm afastadas. Outro paradoxo: o distanciamento forçado nutre o desejo de encontrar-se. Sentindo-nos passageiros de um mesmo barco, nasce, cresce e desenvolve-se um sentimento de simpatia e solidariedade. É nesta atmosfera que: a) somos todos convidados ao deserto, b) o deserto conduz ao outro/diferente, e c) o outro/estrangeiro reconduz ao Pai comum.

Somos todos convidados ao deserto. O binômio quaresma e quarentena define bem o conceito material e espiritual de deserto. Estéril e vazio, esse último quase que nos obriga a uma certa interiorização. A ausência total de vida ao redor, nos convida a debruçar-nos sobre a própria existência. Surge então uma encruzilhada, o horizonte se bifurca em duas direções opostas e contraditórias. Por uma parte, o recolhimento compulsório e a solidão podem cristalizar ainda mais o individualismo da sociedade em que vivemos. Somos levados a uma recusa total de comunicação. Refugiamo-nos como bichos no fundo incomunicável de nosso ego. Resulta então que isolamento e deserto tornam-se despovoados, chegando ao ponto da agressão e hostilidade. Não havendo espetáculo, eu me retiro à caverna.

Por outra parte, o mesmo recolhimento compulsório e a mesma solidão podem levar a uma grande descoberta, ou redescoberta: o tesouro das recordações que carregamos desde a infância. Modifica-se completamente o sentido deste tempo de quaresma e quarentena. Neste caso, o deserto torna-se povoado pelas lembranças que o passado nos fornece. Com tais pérolas nas mãos, o confinamento converte-se em um tempo privilegiado para ressegnificar acontecimentos e experiências já vividas. Solidão, silêncio e deserto conferem luz nova aos fatos negativos, exorcizando, através da meditação, as sombras que pesam sobre eles. E, ao mesmo tempo, torna mais relevantes os fatos positivos que, na noite, a exemplo das estrelas, brilham com mais força. Embora trágica e letal para muitos, a pandemia poder representar um tempo kairológico para rever o passado e reorientar os projetos e passos do futuro. Aqui tanto mais árido é o deserto, tanto mais poderá ser fecundo.

O deserto nos conduz ao outro/diferente. No exercício reflexivo de redescobrir o próprio passado e ressegnificar o sentido da travessia já feita, naturalmente seremos conduzidos a uma outra descoberta: o outro também carrega consigo um tesouro. Também tem um passado cheio de aventuras, fracassos, adversidades e sucessos. Outro que pode ser alguém da família que convive sob o mesmo teto, alguém que trabalha comigo, alguém que mora nas vizinhanças ou alguém que faz parte da mesma categoria ou comunidade. Outro de quem, pelos mais diversos motivos ou circunstâncias, talvez eu esteja distanciado, ou há tempo venha evitando cruzar com ele, e mais ainda venha evitando trocar com ele um olhar, uma palavra, um gesto. Outro que na rotina diária acabou se tornando um estranho.

Ao tomar consciência das pérolas de meu tesouro pessoal, tendo a me surpreender com o tesouro do outro e dos outros. Por isso, consequentemente, ao ressegnificar as “alegrias e esperanças, as tristezas e angústias” (Gaudium et Spes) de minha própria história, tendo igualmente a ressegnificar a trajetória também acidentada do outro. Semelhante sentimento se fortalece pelo fato de sabermos que estamos todos no mesmo barco infectado pelo vírus. Na tempestade da pandemia, a embarcação se tornou mais frágil sobre as ondas agitadas. E os passageiros, sobre ela, se sentem impotentes e aflitos. Hora de estender as mãos, estreitar os braços, mesmo que seja à distância. Com isso, a parada obrigatória e sua coincidência com o tempo da quaresma, com maior facilidade nos torna propensos à simpatia, desencadeando ações fraternas e solidárias. Uma vez mais, e paradoxalmente, o afastamento nos avizinha.

O deserto se torna, assim, um terreno fértil e fecundo para o que o filósofo alemão G. Gadamer chama de “fusão de horizontes”. Se, de um lado, as histórias pessoais contêm pérolas a serem redescobertas e ressegnificadas, de outro, o presente nos oprime com um “inimigo comum” e desconhecido. Que fazer? Como orientar a rota do barco a um porto seguro? Que farol poderá nos guiar? Que bússola seguir. Nesse momento difícil, e muito mais trágico para os pobres, os excluídos e os migrantes, o encontro consigo mesmo e com o outro tende a conjugar esperanças, atividades e utopias. Em lugar de prevalecer a “minha bússola” – os princípios individualistas de cada um – deve prevalecer a “nossa bússola” – os princípios a serem debatidos de forma democrática pelos diferentes protagonistas da sociedade. O princípio máximo é que a vida deve estar em primeiro lugar, ou aqueles onde a vida se encontra mais ameaçada.

O outro ou estrangeiro nos reconduz ao Pai. Chegamos aqui a um dos apelos mais insistentes do Papa Francisco: superar a globalização da indiferença pela cultura da acolhida, do encontro, do diálogo e da solidariedade. Já muitas vozes se unem para dizer que sairemos diferentes desta pandemia. Outras vozes mais otimistas dizem que sairemos melhores. De fato, na vida pessoal ou familiar, comunitária ou social, política ou cultural, as adversidades costumam nos imunizar contra o vírus da inveja e do ciúme, da agressividade e da vingança, da violência e do ódio. Ao tomarmos consciência de que ninguém está acima da ameaça que hoje pesa sobre a humanidade, de que se torna necessário unir os esforços para combatê-la e de que o isolamento temporário deve tornar-nos mais forte e solidários – mais do que nunca nos damos conta de que todos e todas somos irmãos e irmãs.

Como irmãos e irmãs, redescobrimos que somos filhos e filhas do mesmo Pai. Mais ainda: sob o chapéu protetor desta fé e desta esperança, podemos incluir todos os povos e nações, todos os credos e bandeiras, todas as culturas e valores. Aqui não há estrangeiros, estamos todos no mesmo barco e na mesma órbita mundializada. Ainda desta vez, os horizontes de fundem e se abrem ao mesmo tempo. A contribuição solidária dos cientistas e pesquisadores, das autoridades sanitárias, dos profissionais da saúde e de tantas iniciativas populares apontam um novo e mais ambicioso objetivo comum. Ele foi expresso com todas as letras pela Carta Encíclica Laudato Si’, publicada pelo Papa Francisco em maio de 2015: o cuidado com nossa casa comum. O documento, como não poderia deixar de ser, traz intuição e o empenho de múltiplas e variadas entidades, organizações não governamentais, movimentos sociais.

O que está em jogo? A economia globalizada, de orientação liberal, gera ao mesmo tempo a concentração de renda e a exclusão social. Economia que “descarta, exclui e mata”! Daí a progressiva desigualdade socioeconômica, com maior gravidade para os países periféricos e emergentes. No contexto macabro da pandemia, com o binômio quaresma e quarentena, somos convidados a reorientar os rumos da política econômica em seu conjunto e em seus detalhes, local e mundialmente. O grande desafio que se coloca é como retirá-la do piloto automático (“mão invisível”) do lucro e da acumulação de capital e, de forma democrática, tomar nas mãos as rédeas das decisões sobre o que produzir, para quem produzir e como produzir. E nisso privilegiando os extratos da população onde a vida se encontra mais ameaçada. Esse, e não a especulação financeira, deve ser o critério último das prioridades a serem escolhidas.

Por quê? Porque tal orientação político-econômica contraria frontalmente o projeto de salvação que o Pai reservou para seus filhos e filhas. O deserto, o encontro consigo mesmo e com o outro nos devolve ao encontro com a ação salvífica do Criador, e daí à prática solidária.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, 31 de março de 2020

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