Entrevista com Zenilda Petry. A Vida Consagrada no contexto do Segundo Isaías

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 A Vida Consagrada no contexto do Segundo Isaías: provocações

Por Rosinha Martins e Patrícia Silva | 19.07.2016| Por ocasião da 24ª Assembleia Geral Eletiva da CRB Nacional, a assessoria de comunicação conversou com biblista e religiosa da Congregação das Franciscanas de São José e membro da Equipe Interdisciplinar da Conferência, Irmã Zenilda Petry. Ela versou sobre o lema que permeou as reflexões do evento, fundamentado no livro do Profeta Isaías “Eis que eu estou fazendo uma coisa nova” ( Is 43, 19).

Qual foi o tema, Irmã, que vocês trabalharam?

Irmã Zenilda Petry – Foi o lema da Assembleia: “Eis que estou fazendo uma coisa nova. Será que vocês não percebem?”.

A senhora trabalhou a parte espiritual. Como?

Irmã Zenilda Petry – Padre Thomaz Hughes, svd e eu ficamos encarregados da fundamentação bíblica do lema. A mim coube mais rezá-lo e Thomaz abordou a questão bíblica. Eu li todo o segundo Isaias e busquei o sentido mais místico, orante, novo. Observei o tradicional e vi que os levitas pobres foram elaborando uma coisa nova, após a desconstrução do estabelecido; foi muito interessante a leitura de Isaias 40 a 75. Fiz uma leitura mística, da espiritualidade do texto. Foi muito agradável para mim.

Quantas frases neste livro da consolação! Fiz a leitura, observando qual imagem de Deus emerge neste contexto. A primeira imagem não é de um Deus poderoso, vingador, mas de um Deus consolador, aquele Deus que carrega nos braços, consola, que reanima os desanimados.

Outro elemento, são as muitas coisas novas que vão surgindo. O que mais destaquei foi um novo rosto de Deus que emerge nesta experiência de caos que foi o exílio na Babilônia. Se você fizer uma leitura de Isaias olhando os títulos, descobre muito: o Deus Redentor, Consolador, Goel, padrinho. Eles farão da experiência da Babilônia uma nova experiência de Deus. E é neste contexto que estão os cânticos do servo sofredor.

O povo escolhido que seria uma raça poderosa, com a terra, cai. Como vai surgir uma nova experiência?

Irmã Zenilda Petry – Surgirá o servo, o servo de Javé. “Eu te constituí meu servo, meu discípulo”. “O Senhor me deu a língua de discípulo para que eu leve aos desanimados uma palavra de consolo.”

Podemos afirmar que isso já é o resultado da escuta da coisa nova?

Irmã Zenilda Petry – Se você quiser trazer para os nossos dias, já é o resultado, mas eu penso que não dá para medir exatamente as coisas. É todo um ambiente, toda uma dinâmica, toda uma experiência que vai se fazendo no meio deste caos. O exílio da Babilônia durou de 587 a 538. Alguns dizem que o Segundo Isaías estaria sendo elaborado em torno de 30 a 40 anos depois da derrocada, da queda. Durou de 40 a 50 anos de sofrimento, de desilusão, de desolação. Foi um longo processo para se chegar a isso. Talvez os primeiros que foram para o exílio não existissem mais. Então é um processo de elaboração, de experiência, de caos e isso aparece até nos Salmo 136 (137): “Junto aos rios da Babilônia nos sentávamos chorando”. Eles sofreram muito com isto tudo. Talvez muitos não superaram esse sofrimento, nem todos fizeram a travessia para o novo. Mas no meio destas cinzas, deste caos, o grupo dos levitas, o grupo dos pobres de Javé, se abriram e começaram a perceber que algo novo estava acontecendo. Uma experiência nova, que surgiu no meio dos pobres. Dá vontade de fazer recordação de Ezequiel, da imagem dos ossos secos: “Vi um imenso vale de ossos secos”. De repente, o profeta é convidado a profetizar. Ele clama para que o Espírito venha sobre o vale de ossos secos. É um novo espírito que começa a emergir.

É um novo que emerge no meio dos pobres. Você acha que isto provoca a Vida Religiosa?

Irmã Zenilda Petry – Veja. O hino que o Frei Susin elaborou para a Assembleia diz: “Eis que estou fazendo uma coisa nova, à luz da madrugada”. Eu fiz uma provocação para a Assembleia. Eu disse que esta coisa nova tem tensões. É a partir da própria experiência. Em Curitiba,por exemplo, a luz da madrugada chega, quando o inverno é frio, a gente não quer sair debaixo das cobertas. No inverno, à luz da madrugada, é muito difícil de ser contemplada. A gente prefere ficar na zona de conforto em que se está. Este é um risco, neste inverno da Vida Religiosa. Fala-se em crise. Talvez nem todos e todas da Vida Religiosa estejam no inverno, mas eu creio que boa parte dos consagrados estejamos nesta estação e aí não conseguimos perceber a luz da madrugada. Por que a luz de conforto tem nos deixado presas/os. Se não sairmos da zona de conforto não veremos a luz da madrugada. Provavelmente se as mulheres não tivessem ido de madrugada ao sepulcro não teriam feito a experiência que fizeram. Eu creio que a experiência dos pobres nem toda Vida Religiosa consegue perceber. É uma provocação. O profeta Isaías diz literalmente: “Eis que estou fazendo uma coisa nova. Ela está brotando agora e vocês não percebem?”.

Acho que nesta frase está uma denúncia, também atual. “Vocês da Vida Consagrada não são capazes de enxergar coisas novas que vem?” É preciso sensibilidade… Há até cataratas que nos impedem de enxergar.

Que inverno é este que me deixar ficar debaixo do cobertor?

Irmã Zenilda Petry– Estes dias eu ouvi algo de uma pessoa leiga que me deixou preocupada. Ela dizia que a nossa vida religiosa deixa-se engolir pela ideologia neoliberal. Nos deixamos trair por ela. A ideologia neoliberal está diretamente oposta ao Evangelho. Todo o nosso modo de pensar gera os pobres. Nós nos deixamos seduzir pela ideologia neoliberal.

Existem poucos missionários na Amazônia. Há quem diga que uma das razões são as seduções do sistema neo-liberal como as novas tecnologias e outros…

Irmã Zenilda Petry – Penso que a sedução do neoliberalismo é uma espécie de cogumelo de bomba atômica que penetrou o nosso ser. Há um outro aspecto. A Amazônia é uma das missões mais onerosas. Dom Erwin disse certa vez que às vezes levamos até 20 horas para chegar num local e lá só tem cinco famílias. E a tentação da produção nos faz pensar: é uma missão muito onerosa, cara e as Congregações estão empobrecendo e a Igreja não tem recursos para estas missões. Mas há vida religiosa muito despojada. Dormir numa cama ou numa rede, em qualquer lugar não é problema. Você viaja em estradas esburacadas, perigosas. Tem que ter muito despojamento, fé e enfrentar a solidão. Mesmo que tenha poucos religiosos, há. Enquanto houver religiosos lá, continuo acreditando. Quem não vai, sai perdendo.

Vida Religiosa em processo de transformação. Vale a pena refletir um tema como este nesta Assembleia?

Irmã Zenilda Petry – A vida está e necessita de renovação. Não tem como fugir. Ou a Vida Religiosa entra num processo de transformação espiritual, religiosa, de obras, de missão, de relações, até de civilidade ou não tem mais razão de ser. Somos uma realidade social religiosa neste mundo, não aéreas. O mundo está num processo aceleradíssimo de mudanças. Claro que não é uma Assembleia que alcança isso. A temática precisaria de um seminário, outros momentos, um bom tempo para ser discutido, dentro deste país “em suspensão”. A Igreja está com muita esperança, mas neste contexto de um “país em suspensão”. É um tema que é um processo. Não estamos no fim da luz do túnel. Talvez na curva.

Neste contexto do Brasil “em suspensão”, como se dá o profetismo na vida religiosa?

Irmã Zenilda Petry – Creio que, se nós da Vida Religiosa, assumirmos a vivência do Evangelho, se formos homens e mulheres, realmente consagrados ao seguimento de Jesus de Nazaré, aquele Jesus encarnado naquela realidade que é referência para todos nós, se formos pessoas coerentes com aquilo que professamos publicamente, a profecia não precisa ser programada, ela se dá naturalmente. A nossa coerência, a nossa opção de vida, se conseguirmos ser pessoas que se deixam conduzir pela Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito e encarnada na realidade, a profecia emerge, é decorrente. Profecia não é uma opção que faço. É um dom decorrente da coerência. Profecia não é programada. Os outros é que vão dizer se você é profeta ou não. Normalmente o profeta nunca se reconhece profeta. A Vida Religiosa não vai se programar ser profetisa. Precisa ser coerente com sua opção.

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