Numa das intuições poéticas de Fernando Pessoa – Poema do Menino Jesus – este último desce do céu e vem brincar com o poeta. No céu, as coisas andavam um tanto quanto tediosas. Brincar é driblar o tempo. Ou melhor, descobrir sua dimensão mais rica e imprevisivelmente profunda. Em não poucos contextos, brincar e jogar são vizinhos íntimos, quase como sinônimos. Isso em especial quando o jogo não implica, necessariamente, lucros ou dívidas, mas apenas uma forma sadia e gratuita de medir forças, esbanjar energias, experimentar habilidades. Então trata-se não de uma “perda de tempo”, e sim de um ganho, naquilo que ele tem de mais singular e precioso: unir gente, tecer laços, costurar relações – de maneira que cada pessoa e cada povo possa revelar os tesouros de seu patrimônio cultural. Brincar e jogar se entrelaçam como irmãos gêmeos que aprenderam o segredo de tomar nas mãos as rédeas do tempo.
Com efeito, o tempo poder ser vivenciado como fardo, prisão ou jogo. Fardo quando se torna uma espécie de latifúndio improdutivo, possessão estéril. Cercado de todos os lados, isolado e sem uso útil, acaba por deteriorar-se. Se e quando meu tempo é gasto primordialmente comigo mesmo, tende a se degenerar. Como tudo o que se acumula, também o tempo apodrece, torna-se tédio e solidão. Debruçado sobre si mesmo, a exemplo da água parada, deixa de desenvolver suas potencialidades. Não se precipita cascatas abaixo, não se detém para formar belos lagos, não irriga terras e planícies, não caminha em convergência de outros igarapés, na direção das águas do mar, onde o horizonte abre relações mais profundas. Voltado sobre seu umbigo, corre o risco de morrer engasgado com o próprio veneno.
Não raro o fluir dos dias também pode se converter em uma espécie de prisão. Trata-se daquilo que se poderia chamar de tempo investimento. “Time is money”, dizia Benjamim Franklin. Se tempo é dinheiro, somente aposto “no mercado livre” das relações humanas as horas que podem me trazer algum retorno – seja este em breve, médio ou longo prazo. Não posso perder tempo com o que não dá lucro, e pior ainda, com quem não dá lucro. Isso quer dizer que as visitas, os contatos, as amizades e os laços interpessoais, comunitários ou sociais estão subordinados à noção de investimento. Escolhas e relacionamentos são feitas de acordo com a capacidade de aumentar a riqueza. Até mesmo as ligações primárias, de parentesco, tendem a se estabelecer sobre esse critério. Como se faz com o pássaro, a relação vira gaiola, armadilha.
Mas o desenrolar do calendário pode ser visto, por fim, como um jogo livre e saudável. É o que se pode chamar de tempo gratuito. Aqui as horas, os dias, as semanas, os meses e os anos são dispendidas a serviço de encontros e reencontros que, por si só, nos dão prazer e alegria. Entra em cena o conceito sociológico de convivialidade, ou comensalidade. O prazer de estar juntos, de partilhar vida, história e alimento. O carpe diem latino consiste justamente na primazia que se é capaz de conferir ao momento presente. Não se trata de absolutizar o “aqui e agora” em detrimento da memória do passado ou da construção do futuro. Mas de viver o presente de tal modo que ele possa recolher as pérolas de ontem e, ao mesmo tempo, potencializar um amanhã com o brilho lapidado desse tesouro oculto. O “viver bem”, que costuma desfrutar das coisas e das pessoas a seu bel prazer, cede seu lugar ao “bem viver” responsável e sustentável, tanto no uso correto dos recursos naturais, quanto no que diz respeito às novas gerações.
Essa pitada de riso e humor tem o poder de melhor temperar o discorrer do tempo. Além disso, por si só, exerce uma ironia fina e crítica à demasiada importância que conferimos aos projetos de nossas mãos. Severidade e disciplina, sérias e sisudas, nem sempre são boas conselheiras. Acumulam rugas precoces e desnecessárias. Jogo e brincadeira, quando bem dosados, alargam os dias e tornam as noites repousantes. Claro, quem diz humor, não pode esquecer da lágrima. Riso e pranto – alerta o escritor português José Saramago – convivem lado a lado. Compadecer-se é ser capaz de rir e chorar nas “alegrias e esperanças, angústias e tristezas”.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 14 de novembro de 2021