“Criada”: Entre faxinas e escritas

Compartilhe nas redes sociais

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no telegram
Telegram

Maria Clara Bingemer

Séries da Netflix são às vezes ambíguas.  Sobretudo quando filmadas nos Estados Unidos. É quase inevitável o happy end e outras constantes.  No entanto, boas surpresas acontecem.  Resolvi assisti-la por ter lido a sinopse e porque sou mulher, tenho duas filhas e três netas. 

A história de Alex vai além do conto de fadas pós-moderno. Seu personagem central é uma jovem mulher que vivencia uma situação eventualmente camuflada: a pobreza nas sociedades de abundância, que pode ser mais cruel que nos países menos desenvolvidos. Não por acaso a autora do livro que deu origem à série, Stephane Land, pesquisa e escreve sobre a pobreza nos Estados Unidos. 

Alex é uma mulher que tenta sobreviver a uma mãe louca, uma realidade financeira mais do que precária e um companheiro alcóolatra e abusivo.  Sua motivação máxima é a filhinha Maddy, de três anos. Por ela, Alex sai de casa no meio da madrugada sem saber aonde ir. Acaba em um abrigo para mulheres que sofrem violência de gênero. O sistema do país mais rico do mundo lhe oferece entraves que bloqueiam possibilidades.  Seus inumeráveis intentos de conseguir levantar a cabeça vão sendo desmontados um a um por um esquema social feito para ricos.

Para viver é indispensável carro, dinheiro para pagar a creche da filha a fim de poder trabalhar, um lugar quente e seco para morar. É preciso evitar que a criança sofra de bronquite e acabe com pneumonia. Mas acidentes acontecem. A mãe de Alex trafega incessantemente por namorados vários e, assim, não pode cuidar da neta para ajudá-la. O que a jovem ganha não  lhe permite morar em um lugar onde o mofo não seja um companheiro inseparável. Os elementos do conjunto falham e toda a engrenagem vem abaixo. A vida de Alex balança por um fio, novamente vulnerável às investidas do namorado bêbado e violento. 

No meio dessa dura realidade, a protagonista, enquanto limpa banheiros, cozinhas e salas em casas abastadas, escreve.  Em cadernos e a lápis, vai descrevendo e narrando suas experiências.  A fantasia imaginativa a faz sobreviver e manter-se  na superfície do permanente maremoto que ameaça submergi-la na depressão, na miséria e no medo. Entre faxinas e escritas, e agarrada na mão da pequena Maddy que a vai salvando mais da vida do que da morte, vemos Alex manter-se viva e encontrar companheiras do mesmo infortúnio: a violência de gênero. 

Nesse movimento, a jovem mãe aprende que violência não é só física, nem apenas a que deixa equimoses pelo corpo, olhos roxos e marcas de estrangulamento no pescoço.  É também psicológica, feita de gritos, ameaças, cerceamento de liberdade, exigência de sexo não consentido, quebradeiras, copos de bebida jogados na parede, espelhos partidos e móveis quebrados. 

Com essa violência colaboram outros atores: a mãe que a repreende por querer separar-se do companheiro agressor; o pai que em sua infância abusou da mãe e em quem não pode confiar; a sociedade machista e patriarcal que a supõe feita para aguentar humilhações e desditas pelo simples fato de ser mulher. 

Pouco a pouco, emerge do fundo da saga dessa mãe solo – solteira e solitária – a descoberta de uma nova solidariedade, cujas parceiras são outras mulheres: amigas, companheiras de abuso, clientes ricas e infelizes, meninas pequenas como sua filha, que merecem uma vida melhor. A sororidade é a oportunidade de redenção da faxineira e escritora Alex. 

      Em meio a todas as suas fragilidades, essa mulher tem duas forças a seu favor: a maternidade e o talento literário.  Ambos lhe darão forças para continuar acreditando na vida e sobreviver a cada tombo. A filha, que não abortou como era o desejo do namorado, lhe devolve em afeto e amor o dom da vida que nasceu da decisão de deixá-la nascer.  As letras que traça no papel lhe abrirão o caminho para os estudos que a transformarão naquilo que sempre sonhou: ser escritora, narradora, contadora de histórias que povoam mentes e encantam corações.

A série “Criada” fala de todas essas mulheres sobreviventes de um sistema que faz tudo para esmagá-las. Descreve a vida heroica dessas que são imbatíveis em resiliência, criatividade e engenho.  Atesta a força hercúlea do chamado ridiculamente sexo frágil.  E revela que a mais bela criação de Deus é Eva, a vivente e mãe dos viventes, que a cada dia assegura à humanidade sua existência e permanência.

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e testemunho em Koinonia – a inspiração que vem do martírio de duas comunidade do século XX” (Paulus Editora), entre outras obras.

Publicações recentes