Carolina Maria de Jesus: a fome, a liberdade, o sonho

Compartilhe nas redes sociais

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no telegram
Telegram

Arte por Paloma Engelke

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Hoje, Dia Internacional da Mulher, não posso deixar de registrar minha emoção ao ler a notícia de que no último dia 25 de fevereiro de 2021 Carolina Maria de Jesus recebeu o Doutorado Honoris Causa pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).  Em meio a todo o caos que o Brasil vive, com a aceleração exponencial da pandemia, a escassez de vacinas, as decisões e hesitações chocantes do governo e o drama do aumento da pobreza, enfim uma novidade luminosa.

Minha relação com a escrita dessa mulher negra e favelada vem de longe, de minha adolescência quando, aluna do Colégio Sion, recebemos a indicação do livro “Quarto de despejo. Diário de uma favelada” como leitura importante a ser feita para o curso de português.  Já antes da leitura, impressionou-me a biografia da autora.  Carolina começara a escrever ainda criança, em sua Minas natal. E com os escassos dois anos de escolaridade, apaixonou-se pelo ato de escrever e levou-o para a vida inteira. Vida essa que se desenrolaria em boa parte em São Paulo, na favela do Canindé, para onde foi após a morte da mãe.  Ali criou seus três filhos trabalhando como catadora de recicláveis, além de fazer eventuais faxinas e lavar roupa para fora. O papel que retirava do lixo servia para compor um diário de suas experiências e reflexões, que depois resultariam em seu primeiro livro. Vendeu 3 milhões de exemplares e foi traduzido para 16 idiomas. 

Hoje, com o olhar que os muitos anos de teologia me concederam vejo que na escrita de Carolina concretiza-se uma das muitas frases lapidares de Dom Pedro Casaldáliga, bispo do Araguaia, profeta e poeta recentemente falecido: “Só existem dois absolutos: Deus e a fome”. Ambos são os personagens centrais da obra da doutora Carolina.  Lutando contra a fome e buscando a sobrevivência, Carolina registrou e criou seus filhos sozinha, sem marido ou companheiro. Nunca se casou e os três filhos foram frutos de relacionamentos diferentes que tivera.  

Nessa luta infindável e diuturna, a fome é companheira inseparável de Carolina. “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago.” Mordendo seu estômago e o de seus filhos, trazendo-lhe às vezes a tentação de acabar com tudo para não sentir mais sua dolorosa presença, a escritora pensa e dialoga com ela. Pesa-lhe mais a fome dos filhos do que a sua própria: “Os meninos estão nervosos por não ter o que comer” ou “os meus filhos estão sempre com fome”. A fome própria, no entanto, está presente de fato com toda a sua crueza e crueldade.  E Carolina constata: “É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”. E essa lhe parece uma condição necessária para poder exercer com justiça um cargo público de responsabilidade:  “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora”.

Com sua impressionante imaginação e talento literário, Carolina atribui até mesmo uma cor à fome: o amarelo. Ao mesmo tempo, o amarelo em seu livro é a cor da vida. Todos os dias a escritora abria a janela, olhava para o céu e lá estava o sol, amarelo e luminoso. Essa luz, a cada manhã era mensagem de esperança de uma vida melhor, onde as trevas da fome e da miséria seriam vencidas e suplantadas.  

Carolina é uma mulher livre, que por prezar tanto sua liberdade jamais se casou.  Vê a vida que levam suas vizinhas oprimidas pelo machismo dos companheiros e se regozija de sua escolha de vida. As mulheres que moram na favela como ela e vivem com seus homens devem “mendigar e ainda apanhar.  Parece tambor.  À noite, enquanto elas pedem socorro, eu tranquilamente, no meu barracão, ouço valsas vienenses… Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.” 

Que mulher é essa que identifica o gênero musical das valsas para expressar sua tranquilidade de mãe sozinha e sem companheiro?  É a mesma que transcende a miséria através da escrita e envia inclusive mensagens a Deus, em quem pensa e com quem dialoga, olhando em volta e sentindo sua dura e injusta realidade. “Será que Deus sabe que existem as favelas, que os favelados passam fome?”. “Só Deus para ter dó de nós”. “Deus é sombrio. É o advogado dos humildes. Os pobres são criaturas de Deus”.  “Deus precisa iluminar os bancos para que os pretos sejam felizes.” 

Essa poeta era agraciada por Deus com sonhos consoladores e iluminados como os profetas e os patriarcas bíblicos.  Ali experimentava a plenitude que sua vida de favelada não lhe permitia tocar no cotidiano. “… Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organizaram um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso. Quando despertei, pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetáculo, por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh´alma dolorida. Ao Deus que me protege, envio os meus agradecimentos.”

Que a doutora Carolina, discípula da fome e do Deus verdadeiro, inspire todas as mulheres para seguir vivas, enfrentando a realidade, lutando pela liberdade e deleitando-nos com os sonhos deslumbrantes que o Deus da vida nos concede generosamente. 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo”  (Editora Rocco), entre outros livros.

Publicações recentes