Brasil conjuga a pandemia do plural

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São ao menos três em curso. A pandemia do Covid-19 propriamente dita, a pandemia de uma recessão econômica que já se faz sentir e a clamorosa pandemia da instabilidade política. A primeira se mede em números e percentuais crescentes e preocupantes. Deixando de lado a lógica matemática, porém, cada número representa um nome, um rosto, uma história feita de lutas, sonhos e esperanças. E representa também uma família enlutada. Diante do flagelo que se abate sobre todo o país e todo o planeta, resta-nos a homenagem de um silêncio reverente e respeitoso, seja diante dos que não resistiram ao ataque desse “inimigo invisível”, seja com referência a seus familiares, parentes e amigos. A homenagem torna-se ainda mais enfática e significativa quanto se trata dos profissionais e agentes da saúde que, em meio às trincheiras do front, pereceram na fúria do combate.

A segunda pandemia – crise econômica – vem servindo para trazer às ruas e praças os rostos desfigurados dos excluídos, dos invisíveis, dos descartáveis. Contam-se aos milhares e milhões. Excluídos, porque tentam sobreviver às margens do mercado formal de trabalho; estudiosos há que os classificam como “perversamente incluídos”, porque se submetem forçosamente às mais precárias condições de trabalho, moradia e de vida. Trabalham nos subterrâneos ocultos da informalidade, sem carteira assinada e consequentemente sem qualquer segurança social. Boa parte são estrangeiros indocumentados, outros carecem da mínima qualificação. Mas podem também trabalhar como “autônomos”, o que muitas vezes não passa de um eufemismo para dissimular e esconder a auto exploração. Ademais, uma fatia expressiva, trabalhando em home office (escritório em casa), por vezes se sentem sobrecarregados, na medida em que se mantêm 24 horas por dia conectados com a empresa.

Mas são também invisíveis, por um motivo duplo: quase literalmente se escondem nos porões e grotões de todo país, como também nas ruas, favelas, mangues e periferias da zona urbana; por outro lado, são em geral segregados por muros, preconceitos e restrições, para não ferir o olhar delicado e a consciência atormentada das pessoas “de bem” e/ou “de bens”, expressões que normalmente são usadas como sinônimas; invisíveis mesmo quando se encontram debaixo do nosso nariz, porque ignoradas enquanto seres humanos. O que traz à tona o famigerado “você sabe com quem está falando”?, pergunta revestida de profunda discriminação, sobre a qual o antropólogo Roberto da Mata, em sua obra-prima Carnavais, malandros e heróis, jogou grande luz para entender a cultura brasileira, na divisão social entre senhores e subordinados.

E são ainda descartáveis, como tem denunciado com insistência o Papa Francisco. O pontífice refere-se ao gigantesco “exército de reserva” que, a exemplo das aves e do pólen que fecunda a flor, voa nas asas do vento em busca das raras e parcas migalhas do capitalismo concentrador e excludente. Tropeçamos aqui com a multidão dos migrantes em fuga, os quais, tendo o trabalho e a cidadania negados nos locais e países de origem, erram pelas estradas do êxodo, do exílio e da diáspora, uma vez mais de acordo com os ventos do capital. Chamados ao trabalho quando a mão-de-obra se faz escassa, podendo até ser caluniados de vagabundos, acabam por ser inúteis e descartados nos tempos de “vacas gordas”. Como lixo, jogadas para debaixo do tapete.

A terceira pandemia – a crise política – leva o nome de Jair Bolsonaro. O presidente e seu clã familiar e/ou partidário, em meio à disseminação do coronavírus, se especializaram em difundir o vírus da intriga, da difamação e do confronto. É inusitado o arsenal de disparos com que o Messias e sua seita de fanáticos, a partir do “gabinete do ódio”, têm contaminado a atmosfera política. A estratégia bizarra é desqualificar as instituições democráticas – como os poderes judiciário e legislativo ou a autoridade de governadores e prefeitos – em favor de um populismo nacionalista de extrema direita. Isso para não falar dos decretos e atitudes de auto blindagem, no sentido de driblar e escapar à responsabilidade diante de denúncias comprometedoras.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 22 de maio de 2020

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