A praga dos penduricalhos

Compartilhe nas redes sociais

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no telegram
Telegram

A pergunta parte de um leigo que pouco entende de economia e menos ainda de administração ou finanças públicas. De qualquer maneira, talvez não seja ocioso insistir sobre ela: enquanto prevalecerem os famigerados “penduricalhos” nos salários de representantes dos altos escalões da máquina estatal brasileira, vale a pena tantas palavras e tanto tempo gasto para levar adiante as reformas da previdência, tributária, política, além de outras formas de esforço semelhante? Uma vez mais, não estamos trabalhando para proteger os privilégios e benesses das classes dominantes, pagos com as taxas e impostos do conjunto dos cidadãos? Ou ainda, na metáfora de Gilberto Freire, não estamos reproduzindo desde a Colônia, o Império e a República o esquema perverso da Casa Grande & Senzala?

Citemos alguns números extraídos do editorial do Jornal O Globo (Cfr. 17/06/2019, pág. 2): “Em maio, a remuneração líquida de um magistrado de Minas Gerais foi de R$ 752.159,39. Desse total, o Tribunal de Justiça pagou-lhe R$ 725.037,51 a título de ‘vantagens eventuais’, rubrica para verbas indenizatórias”. Num dos países mais ricos e ao mesmo tempo mais pobres e desiguais do planeta, as cifras espantam e escandalizam. Ainda mais que o Brasil segue exibindo uma assimetria social estridente e cronicamente doentia. Pelos campos e cidades, o lucro estratosférico de um punhado de poderosos caminha lado a lado com a miséria e fome de multidões. Mas o articulista prossegue: “Não se trata de algo episódico. Levantamento do G1 mostra ocorrências similares – no mesmo mês, outro juiz mineiro recebeu R$ 340.339,80 como ‘vantagens’”. E mais adiante: “Remunerações acima do teto constitucional se tornaram padrão nas folhas salariais do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público em todo país”. Enfim: “Cerca de 71% dos magistrados brasileiros têm ganhos acima do teto, legitimados por, ao menos, 35 modalidades de gratificações, ‘auxílios’ (moradia, alimentação, viagens) e toda sorte de penduricalhos que o sistema jurídico permite conceber e implantar”. Flagrante o contraste com os salários populares!

O desequilíbrio socioeconômico representa uma enfermidade que, há tempo e de forma progressiva, vem exibindo suas chagas e suas febres. De entre estas, a mais visível é a persistência do desemprego, subemprego e trabalho informal. São notórios em nosso país as estatísticas referentes à violência, seja aquela perpetrada no interior da família, seja aquela orquestrada pelo crime organizado, ou ainda aquela ‘legítima’ das forças públicas. Como encontrar a paz e a tranquilidade sem um emprego estável que permita colocar o alimento na mesa da família e os filhos na escola? Como evitar que os jovens e adolescentes, para não falar das crianças, caiam vítimas do recrutamento das milícias? Disso resulta, ainda, o número cada vez mais expressivo de pessoas e famílias habitando nas ruas!

Outra chaga consiste na falta ou precariedade dos serviços públicos, como saúde, educação, política agrária e agrícola, com crédito e apoio ao pequeno produtor. Condições tais que dão origem a gigantescos e recorrentes deslocamentos de massa, sejam eles realizados em caráter periódico e sazonal ou definitivamente. Testemunhas dessa febre enquanto efeito contagioso são as obras da literatura regionalista brasileira. Alguns exemplos: José Américo de Almeida, com A bagaceira; Raquel de Queiroz, com O Quinze; Graciliano Ramos, com Vidas Secas; José Lins do Rego, comFogo morto, Clarice Lispector, com A hora da estrela; Jorge Amado, com Seara Vermelha; ou João Cabral de Melo Neto, com Morte e vida severina. Todas elas fazem lembrar a obra clássica do norte-americano John Steinbeck, As vinhas da Ira, a qual lhe valeu o prêmio Nobel da literatura em 1962. Centenas e milhares de famílias em retirada triste, penosa, faminta e cabisbaixa – “como quem conta os próprios passos”, ou “como quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas”, escreve José A. de Almeida (A bagaceira). Gente banida pela terra natal e condenada ao êxodo, ao exílio e à diáspora tentando fazer da fuga uma nova busca, do desespero trágico o alicerce para um futuro de maior esperança e bem-estar.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 17 de junho de 2019

Publicações recentes