A família e a alegria do amor

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Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Volto de Roma, onde participei de um seminário na Universidade Gregoriana, pensado a propósito dos cinco anos da Exortação “Amoris Laetitia” e que aconteceu apenas este ano devido à pandemia. Organização impecável, alto nível de conferencistas e debatedores, frutíferas discussões. E o consenso de que bons tempos vão sendo vividos pelas famílias cristãs com a abertura que esse grande documento pontifício traz. 

            A perspectiva não é a casuística estreita e legalista que fez muitos casais e famílias sofrerem, dilacerados entre a fidelidade à sua fé e sua pertença eclesial e os apelos novos e surpreendentes que a vida lhes trazia. É, ao contrário, a porta aberta e luminosa da alegria.  A alegria do amor, única verdadeira. Assim quer o Papa Francisco que seja vista e concebida a família: lugar de vivência da alegria do amor. 

            A família é inicialmente lugar de formação a uma consciência crítica.  Trata-se do primeiro fórum onde as pessoas aprendem a ler e avaliar o mundo que é sua casa.  Esse fórum pedagógico é formado de pessoas que se ajudam umas às outras a tomar consciência dos desafios do mundo em que habitam para discerni-los e enfrentá-los com alegria.  Isso é verdade no que diz respeito aos esposos, mas também de maneira especial quando se trata da formação das crianças.  No número 261 da Amoris Laetitia, o Papa Francisco afirma que para formar moralmente uma criança é preciso ajudar a criar em seu interior, com amor, processos de maturação da liberdade de formação na cultura de uma autêntica autonomia. 

            Essa liberdade e autonomia levam forçosamente a que a criança possa ser e situar-se não apenas protegido e ao abrigo de todo percalço no seio da família, mas exposto aos problemas de seu meio, alguns muito duros, conflitivos e dolorosos.  Porém, aí em meio a esses desafios estará sempre acompanhada, sem ser dominada ou que lhe seja imposta a leitura feita por outros.  Ao revés, será instada e acompanhada para avaliar e discernir o que se lhe apresenta da realidade, a fim de poder tomar atitudes e decisões. 

            A tomada de consciência sobre todas as questões que a realidade lhe traz ao encontro proporciona aos jovens e adultos que formam a comunidade familiar a perplexidade diante da velocidade com a qual as coisas mudam, caracterizando uma mudança de época.  E essa constatação, que aflora à consciência, leva ao espírito que atravessa do começo ao fim o documento papal: não se pode, no que diz respeito às questões de moral, simplesmente repetir fórmulas antigas que não repercutem mais nas pessoas e não fazem nem mesmo sentido para as mesmas. 

            A exortação Amoris Laetitia concebe – em profunda sintonia com o que diz constantemente o Papa Francisco – a vida moral baseada essencialmente nos exemplos e  testemunhos.  Assim, a teologia moral seria como uma pedagogia, tecida de numerosos exemplos, nos quais os casais e as famílias possam reler sua própria experiência e dela aprender.  E assim crescer como comunidade.  Se damos crédito ao que diz Paulo VI no documento Evangelii Nuntiandi – que as pessoas hoje em dia escutam mais as testemunhas que os mestres – estes exemplos são cruciais para a credibilidade da família enquanto instituição. 

            Na beleza desse desafio, a sexualidade deve ser vivida enquanto dinamismo constitutivo e essencial da vida e ser assumida na dinâmica familiar e na vida de fé em um sentido mais largo.  Um verdadeiro crescimento integrado das e nas famílias não pode perder de vista que a sexualidade hoje apresenta aspectos muito diversos aos do passado, com consequências vitais igualmente diversas.  Os distintos modelos de família revelam essa comunidade humana como multicêntrica e configurada em modelos muito diversos, que não podem ser ignorados.  

            Segundo a lógica do Evangelho, a família não existe para si mesma nem pode existir autocentrada e voltada para a consecução de sua própria virtude e excelência. Isso estabeleceria uma dicotomia malsã entre a vida privada do lar e a dimensão pública do mundo e da sociedade. A família existe no mundo e para o mundo.  E é pela escuta das necessidades e prioridades deste mundo e desta sociedade que deve desenvolver sua identidade e prioridades pedagógicas e ativas.  A proposta e o apelo do Evangelho dirigem-se aos que formam uma família no sentido de que ela não se autocompreenda como fim em si mesma, mas sim como uma comunidade que existe para que o mundo seja mais justo e mais humano. 

            A mensagem cristã não é feita para seres perfeitos, mas para seres humanos com imperfeições, ambiguidades e pecados.  A Amoris Laetitia relembra à Igreja que ela deve ser capaz de dialogar com todas as pessoas, mesmo as que estariam em situação irregular perante a Igreja que amam e à qual querem continuar a pertencer. É enquanto seres criados com um corpo sexuado que a salvação nos é proposta.  A Igreja não quer ser juíza implacável do modo pelo qual as pessoas administram e vivem sua sexualidade, mas apresentar-lhes a alegria do amor.  Assim, a sexualidade será fonte de alegria e não de repressão, tristeza, violência, opressão. A humanização da sexualidade seria um objetivo a perseguir com a ajuda da graça. 

            Ao término do seminário, em encontro com o Papa Francisco, pudemos ouvir de sua boca a confirmação do vivido e refletido naqueles dias: é preciso saber buscar as fontes e a primeira raiz sem andar para trás.  Anda-se para a frente, não para trás.  Andar para trás não é cristão.  Conciliar a fidelidade às fontes mais profundas e originárias do amor e vivê-lo caminhando para a frente é o desafio posto às famílias que hoje desejam viver a alegria desse amor. 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Teologia Latino-Americana: raízes e ramos” (Editora Vozes).

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