A culpa é do papagaio

Compartilhe nas redes sociais

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no telegram
Telegram

Corda esticada não tem vida longa. Com o passar do tempo, os dois polos do espectro se cansam, esgotam as forças e cedem. Ou a corda começa a se desfiar, comprometendo sua resistência. Parece ser esse, entre outros, um dos aprendizados eleições municipais que se encerram ontem. Em lugar de um radicalismo beligerante e extremado entre esquerda e direita, os cidadãos preferiram voltar à realidade dos problemas cotidianos. Colocaram os pés no chão. O resultado não se fez esperar: os votos das urnas se concentraram mais sobre os candidatos que se mostraram responsáveis com as políticas públicas, tentando buscar soluções concretas para o bem-estar da população. Política no bom sentido da palavra! Nesta perspectiva, a pandemia do Covid-19 representou um espelho a ser olhado com redobrada atenção. As autoridades que levaram a sério o flagelo e procuram diminuir seus efeitos perversos tiveram melhor avaliação.

Isso não impede que os bolsonaristas continuem navegando na teoria da conspiração ou no discurso do negacionismo – seguindo de perto a narrativa aloprada de Trump. Basta um olhar às redes sociais para lembrar a história do “papagaio de traficante”. O bendito papagaio, dia após dia, costumava alardear pelos quatro ventos e pelos telhados da vizinhança, uma série de piadas obscenas e palavras como “pó branco”, “fuzil”, “AR 15”, “mata, mata” e outros impropérios irreproduzíveis neste espaço. Isso sem falar de suas diatribes e lorotas com qualquer passante que ousasse cruzar pelos arredores. Por mais esforços que se fizessem, impossível corrigir o vocabulário do “louro”. Até que os vizinhos resolveram tomar coragem e falar diretamente com o “traficante”, da irreverente ave de estimação. Resposta dele: a culpa é do papagaio!

Idêntica narrativa se repete tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Em terras do Tio Sam, num pleito levado a cabo com cédulas manuais, culpa-se o correio ou a contagem malfeita. Já em terras de Santa Cruz, num pleito realizado com urnas eletrônicas, culpa-se a insegurança do processo. Lá e cá, a culpa é do sistema, embora os sistemas sejam diversos. Lá e cá, tenta-demonstrar fraude, ainda a que jamais tenham aparecido provas cabais da acusação. Lá e cá, a estratégia é desqualificar o desempenho eleitoral, mesmo que ambos os processos usados tenham levado à presidência, respectivamente, Trump e Bolsonaro. Ao invés de investigar as conversações na casa do “traficante”, coloca-se a culpa no pobre papagaio. Ou então agride-se o porta-voz de uma informação adversa, sem procurar investigar a veracidade ou não de tal notícia. Tornou-se comum, de resto, lá como cá, esbravejar contra repórteres, jornalistas e a imprensa pelas bobagens proferidas diante das câmaras, dos holofotes e dos microfones.  A mídia é a grande culpada – infectada que está pelo comunismo.

A culpa é da caixa de ressonância, não de quem falou ao microfone. Diante do duplo espelho da pandemia e do resultado das eleições, o olhar permanece vesgo, míope ou cego. Não é capaz de identificar os próprios erros e fazer uma autocrítica. Comportamento que, diga-se de passagem, vale para os polos extremistas de direita e de esquerda, ambos derrotadas no pleito. Princípios éticos, atitude de autocrítica e humildade para corrigir-se parecem ter desaparecido da prática política – e isso com particular negligência nos países de tradição democrática. Alguns tentam apostar no crepúsculo da democracia, preparando seu enterro e sepultamento.

O recado dos eleitores levanta uma série interrogativos para avaliação. Ao invés de manter a corda tensa e polarizada sobre tudo e sobre todos, e de fazê-lo em todo lugar e em toda parte, por que não retornar aos temas que afetam diretamente a população, em particular os extratos de baixa renda? Por que não abrir novos canais de consulta e participação popular? Por que não criar instrumentos e mecanismos em que os movimentos, entidades e organizações da sociedade civil tenham vez e voz? Por que não deixar o papagaio falando sozinho e enfrentar, de forma série e responsável, os entraves, os nós e os impasses que amarram o Brasil à pobreza, à violência e à desigualdade social? Em uma palavra, por que não voltar a governar?

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2020

Publicações recentes