Pobres de Pedro, estamos mais ricos de coragem

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O velório de Dom Pedro , em Batatais (SP). Na cruz, a estola de retalhos, da Nicarágua

Dom Pedro se foi. Sem ele, todos sabemos, será muito mais difícil atravessarmos a escuridão e nos movermos no meio do escombro desse mundo, cujos alicerces e paredes despencam à nossa frente, por mãos daqueles que deveriam cuidar de suas bases. Será bem mais difícil agora, sem Pedro, como tem sido sem Tomás e todos os outros que nos precederam.

É com o seu testemunho, contudo, que contamos para continuar. Poucos como Pedro nos deixaram tanto. Suas grandezas estão na simplicidade, na coragem, no compromisso sério, na radicalidade evangélica, na sabedoria insone, no carisma, na doçura misturada com a força. Desde lá, descalço sobre a terra vermelha, com mãos frágeis e corpo franzino, enfiado entre os índios e lavradores, recolhendo sangues e suores, sangrando ele mesmo sob as noites profundas e abandonadas dos sertões brasileiros, Pedro falava de esperanças e de liberdades. Sua presença enchia de tensão os palácios e os altares, porque seu corpo torto e trêmulo, conseguia transitar onde a poucos é possível, sem os trajes e as pompas que ele tanto denunciou. A voz adocicada portava conteúdos ácidos quando era necessário, porque o seu compromisso era com as causas maiúsculas, que nunca cabem no silêncio constrangido da paz que muitos desejam, à força das injustiças.

Vindo das mesmas terras frias de Domingos de Gusmão, Pedro também sentia aquele vento que “curtia as almas” e que, há mais de 800 anos, “renovou a fé da Igreja” com nova pregação. Pedro, como Domingos, por tê-lo entendido tão bem, atualizou sua versão sertaneja com detalhe e falou da união dos povos, a partir do íntimo.

Foi latino-americano como poucos, teimou por essa causa da pátria-grande a tal ponto de parir aquele que seria o livro mais querido entre os militantes sociais e agentes pastorais, a Agenda Latino-americana que logo se tornara mundial. Com Lília Azevedo, João Xerri e o Grupo Solidário São Domingos, fundou o projeto que hoje é coordenado no Brasil pela Comissão Dominicana de Justiça e Paz. Esse era o seu estilo: dar à luz e doar ao mundo. Foi assim com o CIMI, com a CPT e tantas outras iniciativas que contaram com sua inspiração e arrojo.

Quando o encontrávamos ali, à beira dos riachos amazônicos, nas torrentes do Araguaia, chapéu de palha à testa, comendo em algum acampamento ou refletindo sob uma mangueira, o que se via era tão somente um homem encarnando as causas da verdade e do amor, rabiscadas em poemas cujo valor expandem aos corações aquele mesmo líquido amniótico. O ventre desses nascimentos não era outro senão o mundo mesmo, todas as circunstâncias, as fragilidades e as contradições. Ali, cheio de mundo e sem temor, Pedro parecia se apresentar diante do Mestre para aprender diretamente na fonte as coisas do Evangelho que anunciava. Suas intuições, por isso, tinham ainda aquela molhança das origens, cuja potência é poder de ressurreições. O que ele sabia, sabia de cor, por isso. Ele só falava do que o coração estava cheio.

Hoje, quando o sol estava a meio plano, ficamos mais pobres do que nunca. Pobres de Pedro, de sua presença, de seus conselhos, de suas verdades. Mas o selo que ele assentou com barro e sangue nas nossas testas, há de nos inspirar na travessia dessa longa noite que padecemos, sob os fascismos e as ditaduras celebradas pela ignorância de parcela de nossa sociedade adormecida. Agora que os pobres mais precisam, é esse sinal que devemos seguir, tocha em punho, caminhando longe e decididos, para onde o próprio Pedro nos levou. Pobres de Pedro, estamos mais ricos de coragem.

Goiânia, 08 de agosto de 2020 – Festa de São Domingos de Gusmão – Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil

O velório de Dom Pedro Casaldáliga, em Batatais (SP)

 

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