O Brasil celebra oficialmente o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, todo dia 20 de novembro, desde 2011.
Mais que um feriado nacional, a data faz referência à Zumbi dos Palmares, mártir quilombola e herói da resistência negra. Zumbi era o líder do Quilombo dos Palmares, situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco, no Nordeste, e foi morto por bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho, em 1695.
Mais de 320 anos depois, os afrodescendentes continuam lutando para conquistar o espaço a que tem direito na sociedade e na Igreja.
Para o assessor nacional da Pastoral Afro-Brasileira da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), padre Jurandyr Araújo, a data deve, sim, ser comemorada, por inúmeras razões.
“É o símbolo da resistência dos negros, bem como da luta por direitos que seus descendentes reivindicam”, salienta. Ele cita as conquistas obtidas por meio de outros dispositivos legais, como a punição por racismo, a lei das cotas raciais e, em especial, a lei 10.639/2003, que que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira nas escolas. “São exemplos de legislações que preveem certa reparação aos danos sofridos pela população negra na história do Brasil”, acrescenta.
Em relação à Igreja, padre Jurandyr avalia que o movimento negro tem progredido significativamente, com o surgimento de muitos grupos. Isso acaba revelando a vitalidade e a sintonia dos seguimentos representativos da comunidade negra com as pessoas que lhe são solidários.
Porém, ele acredita que ainda há muito a fazer. “É hora de passar das análises e dos discursos para ações afirmativas e concretas, que deem resultados positivos e que possam contribuir efetivamente na criação de novas condições que estabeleçam um processo de superação das desigualdades”, aponta.
Romaria das Comunidades Negras
Para celebrar a importância da data para o povo brasileiro, há 19 anos a Pastoral Afro-Brasileira realiza, em Aparecida (SP), a Romaria das Comunidades Negras ao Santuário Nacional.
De acordo com padre Jurandyr, a cada edição uma diocese é escolhida em assembleia para preparar o evento. Este ano a arquidiocese de Maringá (PR) foi a responsável pelo evento, realizado no dia 7 de novembro, com o tema O clamor do povo negro, com a Mãe Aparecida, na luta por uma vida digna e lema A dignidade acontece na luta por direitos.
A Pastoral Afro-Brasileira está presente em todas as dioceses do Brasil, por meio de grupos organizados,
ou não, e ligados, ou não à Igreja
Ainda segundo o sacerdote, a preparação para o Dia da Consciência tem sido intensa e leva em consideração todo o mês de novembro, dedicado a reflexões sobre o papel dos afrodescendentes.
Durante todo o mês, cada comunidade, paróquia e diocese tem organizado palestras, celebrações, danças, visitas e também atividades de conscientização sobre racismo e discriminação.
História da Pastoral Afro-Brasileira começa na década de 1970
A Pastoral Afro-Brasileira da CNBB foi oficializada como organismo oficial da Igreja do Brasil em 1998, mas começou a ser idealizada na década de 1970. Padre Jurandyr entende que a Pastoral, entendida como o “agir da Igreja”, teve início quando os negros “arrancados” da África chegaram ao Brasil, mas, a Conferência convocou um grupo de cinco sacerdotes negros para elaborar um documento para ser apresentado na Conferência de Puebla, realizada em 1979, no México.
“A partir daí percebeu-se a necessidade de uma atenção pastoral para com ou grupos culturais indígenas e Afro-americanos”, recorda. Em 7 de setembro de 1981, foi criado o Grupo de União e Consciência Negra e, durante uma celebração eucarística na Catedral da Sé, em São Paulo (SP), um grupo de padres, pede, em alta voz, a criação da Pastoral Afro-Brasileira.
O próximo passo importante foi dado com a Campanha da Fraternidade de 1988, com o tema Ouvi o clamor deste Povo, focada na população afrodescendente. “Então começou e continua até hoje a organização de grupos e variadas atividades”, salienta.
Em 1998, a Pastoral passou a fazer parte da Conferência oficialmente, segundo ele, “como consequência de um longo processo de conscientização e militância de gerações de negros e negras”.
Estrutura
Finalmente, em 2003, graças ao documento 85, a Pastoral passa a integrar a estrutura da CNBB, como espaço de ação e conscientização da Igreja e da sociedade para a realidade da população afro-brasileira.
“É a solicitude da Igreja para com os Afro-brasileiros e sua condição de discriminação e exclusão”, justifica o padre.
Ele define o organismo como uma forma de atuação em relação aos direitos fundamentais da cidadania para todos, sobretudo para aqueles que vivem à margem da sociedade, em virtude de sua cor e etnia.
É também uma forma de combate ao racismo, ao preconceito, à xenofobia e outras formas de discriminação.
De acordo com ele, a Pastoral está presente em toda as dioceses do Brasil, por meio de grupos, organizados ou não, e ligados ou não à Igreja. O Secretariado de Pastoral Afro-brasileira, sediado em Brasília, tem a função executiva de articular todos os Regionais da CNBB, os grupos existentes em âmbitos paroquial, diocesano, comunidades e parcerias.
Além disso, participa, em nível Latino-americano e Caribenho (CELAM), da Secretaria de Pastoral Afro-americano e Caribenho (SEPAC/CELAM). “O Brasil atualmente coordena essa secretaria e temos inúmeros encontros, seminários, assembleias regionais, diocesanas, paroquiais e de comunidades, bem como, em nível Latino-americano e Caribenho”, afirma.
Presença na vida consagrada é marcada por percalços
A presença dos negros na vida religiosa consagrada tem crescido, mas o quadro nem sempre foi esse. Padre Jurandyr ressalta um crescimento da participação dos negros e negras na vida religiosa e nos seminários, mas pondera que a questão maior é a permanência. “Os formadores, não entendendo a cultura dos negros, dizem que não têm vocação”, alerta.
Para a assessora executiva de Comunicação da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), irmã Rosa Maria Martins Silva, o preconceito dentro da Igreja ainda e reflete o que acontece na própria sociedade. “Há muito a crescer nessa ‘coisa’ da inclusão do diferente; não só do negro, mas do indígena”, aponta.
Irmã Rosa também lamenta que, seguindo o estereótipo imposto pela sociedade, em muitos casos, a animação vocacional das congregações dá preferência para pessoas brancas. “As vocações negras aparecem, mas não são muito visualizadas”, afirma.
A religiosa acredita que, se a Igreja é testemunha de Jesus Cristo, que não faz distinção entre as pessoas, ainda é preciso abrir mais o coração para o diferente.
Ela avalia que o número de negros que desempenham funções de destaque, no campo missionário ou administrativo, tem crescido, mas ainda é muito pequeno. “Raramente assumem um cargo de importância; os negros estão sempre nos serviços mais pastorais, mais embaixo”, opina. “Mas, graças a Deus, isso tem mudado um pouquinho”, completa. Se o panorama começa a mudar, não se pode esquecer que, antes do antes do Concílio Vaticano II, a situação era muito pior, já que praticamente não existiam negros nas congregações.
Após a abertura, a presença começou a ser marcada de modo tímido e os primeiros religiosos negros apenas desempenhavam funções de serviço, seguindo a mentalidade escravocrata da época.
Diante das dificuldades vivenciadas ao longo do tempo e dos muitos desafios que os negros têm pela frente, irmã Rosa afirma ser muito grata por fazer parte da Igreja, onde consegue exercer seu protagonismo. “É um espaço que me dá oportunidade de lutar pela minha gente. Graças a Deus venci e vou vencendo preconceitos e tornando-me uma pessoa forte”, reflete.
Um fator importante é que, segundo dom João Braz de Aviz, prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as sociedades de Vida Apostólica, do Vaticano, hoje a esperança das vocações religiosas vem da África. No nos outros continentes, as vocações surgem em proporções bem menores.
GRENI
A CRB mantém, desde a década de 1990, o Grupo de Religiosos Negros e Índios (Greni), criado para refletir sobre a presença dessas etnias na vida religiosa, a partir dos valores históricos, culturais e sociais.
Um dos objetivos do Greni é fazer da vida religiosa presença onde a vida é diminuída, ameaçada, negada e, por vezes, torna-se sinal de contradição, em sintonia com a proposta da Pastoral Afro-Brasileira da CNBB.
Segundo irmã Rosa, assessora executiva de Comunicação da CRB, os 20 regionais da Conferência já tiveram Greni e hoje o papel desse importante organismo está sendo redimensionado.
Se à época do Concílio o preconceito já era grande, imagine o que acontecia no século XIX, em uma região escravocrata como a da Campanha (MG), onde viveu Francisco de Paula Victor, o padre Victor.
O sacerdote negro, que atuou na cidade mineira de Três Pontas, foi beatificado neste sábado, dia 14, e pode vir a ser o primeiro santo brasileiro afrodescendente.
Padre Jurandyr recebe com muita alegria a beatificação do sacerdote mineiro. “A sua dedicação e as suas virtudes fizeram-no admirado por todos e um “santo” como o padre Victor é sinal para todas as gerações”, ressalta.
Já na opinião de irmã Rosa, a beatificação acontece em um momento muito difícil, em que o racismo tende a ascender na sociedade e, por isso, deve reanimar a luta dos negros por dignidade. “É uma forma de Deus ver essa situação toda; é Ele dizer para nós: lutem pelo espaço de vocês; todos são iguais”.
Assim como o que acontece com muitos negros hoje, a vida de padre Victor foi marcada pela discriminação. O atual bispo da Campanha, dom Diamantino Prata de Carvalho, classifica a luta de Francisco como “um verdadeiro calvário”. Os percalços foram grandes e ele teve de conviver com o preconceito e a desconfiança.
Homem de fé e caridade
Nascido em 1827, Francisco era filho da escrava Lourença Maria de Jesus e só conseguiu a liberdade por intermédio de sua madrinha de batismo, Marianna Bárbara Ferreira.
Foi Marianna quem ofereceu o dote para que ele fosse libertado e pudesse seguir a vida consagrada, em 1849.
Antes de entrar para o seminário, foi aprendiz de alfaiate e sofreu muito preconceito. Segundo o prelado, quando o jovem manifestou o desejo de ser padre, seu mestre de ofício desdenhou. “Deu risada e disse: um negro escravo ser padre, só no dia em que as galinhas tiverem dentes”, conta.
Foi em uma das visitas do então bispo de Mariana (MG), dom Antônio Ferreira Viçoso, que Francisco revelou o desejo de seguir a vida religiosa o jovem falou sobre o desejo de ser padre. Dom Antônio o acolheu com alegria no seminário, no dia 5 de junho de 1849.
Devoção a padre Victor atrai milhares de fiéis à cidade de Três Pontas (MG)
Francisco foi ordenado sacerdote em 1851 e permaneceu em Campanha como coadjutor até o ano seguinte, mas foi no município de Três Pontas que desenvolveu suas atividades pastorais. “Lá ele passou 53 anos em e toda a sua vida ministerial foi servindo o povo, fazendo escola para as crianças”, ressalta dom Diamantino.
A escola a que o bispo se refere é a Sagrada Família, por onde passaram brasileiros de grande projeção, como dom João de Almeida Ferrão, primeiro bispo da Campanha, e cônego José Maria Rabello, que foi o seu coadjutor em Três Pontas.
Padre Victor instruiu muitos filhos de famílias humildes, fazendo deles grandes homens de cultura, que passaram a viver da inteligência, nas mais variadas profissões.
O bispo da Campanha acredita que padre Victor tenha sido um homem à frente do tempo. A característica marcante era a caridade para com os mais pobres. “Pouco guardava para ele e chegou a esconder um leproso na casa paroquial para cuidar dele”, conta.
Ao longo da vida, padre Victor pregou a fé, a esperança, a fortaleza, a prudência, a justiça, a obediência, a castidade, a temperança, a humildade, o temor a Deus e, de modo especial, a caridade.
Fonte: Reportagem de Deniele Simões exibida no Jornal Santuário – Aparecida – SP