Centenário de Padre Sadoc – Castanheira frondosa

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Visitando, certa vez, comunidades ribeirinhas do rio Tocantins, no estado do Pará, ouvi dizer que as árvores plantadas junto às castanheiras tendem a crescer mais depressa e a atingir alturas mais elevadas. Segundo me disseram, isso se deve à influência que a majestosa castanheira exerce sobre as árvores que tem perto de si, incentivando-as a um desenvolvimento mais generoso. O que os cientistas dizem sobre isso, não sei. Certo é que esta percepção das pessoas simples e sábias daquele rincão da Amazônia gravou-se em minha memória, levando-me a pensar no estimulante e benfazejo influxo que recebemos de pessoas humanamente qualificadas, espiritualmente fecundas e moralmente consistentes. São como castanheiras, que se elevam robustas na direção do céu. Sustentadas por raízes profundas, resistem às intempéries. Ornadas de copas amplas e verdejantes, oferecem alívio e frescor. Pródigas em abundantes e saborosos frutos, servem para muitas finalidades, alimentando e curando inclusive.

Desde a mais tenra idade, tive a imerecida alegria de crescer à sombra de uma dessas castanheiras. Refiro-me a Monsenhor Gaspar Sadoc da Natividade, Padre Sadoc, como prefere ser chamado. Presbítero do clero arquidiocesano de Salvador (BA), nascido a 20 de março de 1916, há exatos 100 anos. Afamado por sua exuberante oratória, cognominado o Vieira da Bahia [alusão ao incomum orador sacro que foi o jesuíta Padre Antônio Vieira (séc. XVII)], Padre Sadoc correspondeu largamente aos dons com que o Senhor o aquinhoou, conservando-se sereno, lúcido e frutífero até a idade centenária. Admirado e aplaudido por sua refinada cultura, pendor poético, palavra fluente e iniciativas arrojadas, comove e edifica ainda mais por sua nobreza de caráter, coração magnânimo, simplicidade de vida e espírito de fé sem ranhuras. Os epítetos com que costumam descrevê-lo são os mais diversos, quase sempre relacionados à terra que o viu nascer e da qual nunca quis se afastar, em seus 75 anos de profícuo ministério: homem ecumênico da Bahia, ícone do clero baiano, pastor e irmão de todos, pobres e ricos, leigos e padres, cristãos e não-cristãos, pacíficos e aflitos. Para todos e para cada um, a palavra que ilumina, o gesto que consola, a ajuda jamais recusada, o amigo certo nas horas incertas. “Sempre e em tudo, Padre, tão somente Padre”, como gosta de dizer. Nas três paróquias que perfizeram seu itinerário pastoral, nos incontáveis serviços prestados à arquidiocese ou nos púlpitos de suas eloquentes pregações, a mesma personalidade cravejada de virtudes, emoldurada por uma dignidade retilínea, sem artifícios, sem frisos, sem protocolos. Ao completar 50 anos de Ordenação, em 1991, ressoou na Catedral Basílica de Salvador esta sua humilde confissão: “Se me perguntassem o que desejo a esta altura de minha vida, responderia: queria começar tudo de novo para em tudo ser melhor”. Castanheira em contínuo crescimento!

O porte esguio mantido até os 90 era como que o espelho de sua elegância sacerdotal: homem de Deus, sempre voltado para os outros, com as mãos abertas para confortar e fortalecer, deixando brotar do mais íntimo a água viva de seu zelo apostólico, haurido de uma vigorosa amizade com o Senhor, intensificada em sua espiritualidade marcadamente eucarística e mariana. Dentre as muitas lembranças retidas no depositário de minha gratidão, guardo as muitas ocasiões em que, chegando à sua Paróquia da Vitória, encontrei-o genuflexo, com os olhos fixos no sacrário, recitando a Liturgia das Horas ou desfiando seu Rosário. Vejo-o também de olhos cerrados, ouvindo minha confissão de pecador, para, logo em seguida, aconselhar-me paternalmente e absolver-me com a autoridade de um abalizado dispensador da misericórdia. A terceira recordação é a de sua inexcedível solicitude para com os enfermos, aos quais jamais faltavam sua presença transbordante de paz e seu abraço de duradoura consolação. Lembro-me bem: em plena Copa do Mundo, Padre Sadoc chegou de surpresa à nossa casa para assistir o jogo da seleção brasileira ao lado de meu pai, seu amigo de longa data, então combalido pelas sequelas de um AVC. Era fácil encontrá-lo nos corredores dos hospitais ou nas casas de paroquianos e amigos, levando a todos o bálsamo da Sagrada Unção ou tão somente o orvalho de sua cativante companhia. Com toda razão, disse, certa vez, que tinha aprendido “a ciência da dor recolhendo lágrimas, a ciência da vida partilhando esperanças, o segredo de quase tudo no amor para com todos”.

Há alguns anos, reduziu-se consideravelmente o campo de atuação de Padre Sadoc. Uma bactéria, instalada em sua medula, deixou-o tetraplégico, totalmente dependente de cuidados alheios. No crisol da enfermidade, impossibilitado de assumir os empenhos que tanto enalteciam sua pessoa, reluziu de modo surpreendente o áureo esplendor de sua têmpera humana e de seu perfil presbiteral. “É preciso muita humildade para ser forte e muita força para ser humilde”. Estas suas palavras parecem agora esculpidas em sua vida. Imóvel em seu leito, podemos encontrá-lo com a mesma leveza e jovialidade, a todos acolhendo e abençoando, com a vitalidade de uma frondosa castanheira, sempre fecunda embora ferida, compartilhando a seiva que o faz viver e despertando em todos os que dele se aproximam o desejo de crescer, de elevar-se sempre mais. Jamais me cansarei de agradecer pela oportunidade que tenho de visitá-lo anualmente e de celebrar a Santa Missa junto ao seu leito, unindo sua existência ao mistério pascal de Cristo.

Querido Padre Sadoc, obrigado pelo muito que recebemos de sua vida centenária, de sua dignidade e valor, de sua paternidade espiritual e de sua fraterna amizade. À sua sombra, esperamos crescer e frutificar, como aprendemos de seu exemplo e de sua palavra: “até onde a verdade nos conduza, a obediência nos impila, a justiça nos arrebate, a fé nos arroje, a esperança nos ilumine, até onde nos transfigure a caridade”.

Pe. Vinícius Augusto Ribeiro Teixeira, C.M.

Belo Horizonte, 16 de março de 2016.

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