Bolhas e bolhas

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Quando a tempestade se precipita, as ruas se enchem de guarda-chuvas. De igual modo, quando a fome e a crise, o caos ou a barbárie rondam as portas, cresce a tendência à formação de bolhas. Uma bolha consiste, antes de tudo, em um lar. Casa, refúgio e abrigo, protegido por paredes e telhado contra os ventos que sopram de fora. Quanto mais furiosa a tormenta, tanto mais robusto terá de ser o material da habitação. Para fugir à estranha sensação que o cientista francês Marc Augè denomina como “não lugar”, a bolha transforma-se num “lugar”. Enquanto este último é familiarmente conhecido, produzindo calor, afeto e defesa, aquele é frio, estranho e transitório, como o aeroporto, a rodoviária, a fronteira, e outras espaços do gênero. O forasteiro eventual, de passagem por um “não lugar”, não vê a hora de chegar ao “seu lugar”. Só então sentir-se-á em casa e em segurança, rodeado de coisas e pessoas familiares.

Vale o mesmo seja para as zonas fronteiriças ou o país estrangeiro, seja para a perda de valores e de um chão pátrio onde firmar os pés. Quando as referências se evaporam e, ao mesmo tempo, se abre um abismo à frente, instala-se o risco do “não lugar”. Migração, desemprego, separação, doença, solidão, amor não correspondido, depressão ou morte constituem momentos férteis para esse sentimento crítico de caos, dúvida e medo. Tudo em volta se desvanece, os objetos perdem seus contornos, o horizonte permanece embaçado. Em meio a essa encruzilhada mal definida, qual o rumo a ser tomado? Para onde dirigir o olhar e os passos?

Disso resultam as bolhas. Rapidamente, imperiosamente, desesperadamente – é preciso recriar um “lugar”. Torna-se necessário encontrar algo ou alguém que nos devolva o involucro de uma família, por mais fragmentada que seja. Ter um endereço fixo vira uma obsessão. Neste mundo moderno ou pós-moderno em que nos movemos, a “sociedade líquida” (Bauman), quando não gasosa, faz-se urgente reconhecer alguns pontos sólidos onde pisar com firmeza. Com os pés no chão, as asas do sonho e da esperança ganham maior altura. Velhos conceitos como amizade, encontro, casa, pátria, fazem-se imprescindíveis!

A bolha vem preencher esse vazio, eliminar o vácuo insuportável. Mas existem bolhas e bolhas. Às vezes basta um uniforme, uma camiseta de um clube ou agremiação, uma bandeira colorida. Importante aqui é a sensação de pertença. “Já não me encontro só e perdido em meio às cinzas e escombros de um mundo que acaba de ruir; deixei de ser um solitário na multidão; agora faço parte de um grupo com objetivos determinados”. Outras vezes, é a religião que preenche essa lacuna, devolvendo identidade e coesão aos cacos e fragmentos de um edifício em ruínas. Pode ser um antigo credo que se renova, ressuscita e se cristaliza; ou uma forma diversa de cultuar os deuses, anjos e demônios, onde a própria novidade tende a desempenhar um papel vital.

Não raro, entretanto, as “escolhas” são mais sombrias. Quando todas as portas se fecham, não é difícil cair no recrutamento do crime organizado, em vistas do tráfico de drogas, armas, pessoas e até órgãos humanos. Ou também tropeçar com as “gangues urbanas”, onde impera a milícia do roubo e da extorsão: becos sem saída que costumam cruzar as cartas do baralho com o anterior. E, ainda, emergem com força e por várias partes os grupos neofacistas ou neonazistas, por vezes com o respaldo das políticas ideológicas de extrema-direita. Via de regra, suas vítimas são os migrantes, refugiados e outras minorias discriminadas.

Há, porém, uma bolha que, diferentemente das demais, desabrocha para o mundo e a sociedade. Trata-se do caminho pavimentado pelas expressões artísticas. Linguagem plural e universal que, a exemplo do céu, da luz, da água e da flor, brilha para todos e em todas as direções. Algumas bolhas se convertem em guetos ou tumores: isoladas, cerradas, impenetráveis. Nocivas à saúde de todo o organismo sociocultural. Outras, tais como a música e a dança, a pintura e a escrita, o esporte e a culinária, entre tantas outras formas de arte, ao invés de guetos, se abrem e explodem para o outro e a história, em vista de uma reconstrução sadia do tecido social esgarçado.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 20 de dezembro de 2021

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