VRC no cenário do caos epocal

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Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs 

O escuro, o vazio e a solidão – cenário de caos epocal – constituem terrenos propícios para o nascimento de fantasmas. Isso vale tanto para a sociedade, a política, a economia e a cultura, quanto para a Igreja e as diversas formas de Vida Religiosa Consagrada (VRC). Onde não há informação clara e transparente, onde não se levam em conta as grandes referências e os valores pétreos da humanidade, e onde impera o individualismo narcisista, nascem, crescem e proliferam as ervas daninhas e os espinhos. Área abandonada volta a ser terreno baldio, terra de ninguém. Neste contexto de aparente vacuidade, a VRC é chamada a discernir os “sinais dos tempos”, como brotos do Reino que emergem de onde menos se espera. Improvisamente, Deus irrompe nas coordenadas da história para abrir as veredas a caminhos novos, inéditos e inesperados.

A escuridão vem da falta de luz. O império da razão absoluta destronou o teocentrismo da era medieval e entronizou o antropocentrismo. Tivemos o século das luzes (“cogiro ergo sum” de Descartes), mas a racionalidade iluminista não penetra em todas as dimensões do mistério humano e divino. O brilho do saber, da ciência e da tecnologia trouxe avanços e mais conforto, mas deixou sombras ocultas em cavernas ignotas, selvagens e labirínticas. Resulta que, do ponto de vista da justiça social, da distribuição das riquezas e da preservação do meio ambiente, o racionalismo deu origem a uma sociedade irracional – irracional pelo contraste entre fome, desperdício e ostentação, como também pela devastação da natureza e pela violência.

Origina-se então o temor do caos e do vazio. O paradigma da modernidade, centrado na razão se fragmenta. As verdades se convertem em interpretações, as certezas cedem lugar às dúvidas, as perguntas não têm resposta. Quando as interrogações são maiores que nossa capacidade de responder, gera-se a crise. E com ela, acumulam-se medos, angústias, insegurança e instabilidade. Tudo vira efêmero, passageiro, volátil, descartável. Dissolvem-se no ar as referências sólidas, cada indivíduo converte-se em sua própria referência. Instala-se a sociedade atomizada, onde as partículas do átomo giram em torno do núcleo. Instintos, interesses, desejos, sentimentos e emoções giram em torno do umbigo de cada um. É o que Zygmunt Bauman chama de modernidade líquida. Com a revolução da informática, a galáxia virtual toma o lugar do universo real, dos desafios do cotidiano. Bem ou mal, sabe-se o que foi deixado para trás como resíduo histórico, fossilizado, mas as vias a seguir e o horizonte do amanhã permanecem nebulosos, desprovidos de contornos.

Passamos a habitar a mais dura e árida solidão. A solidão do ruído estridente em meio às correntes da multidão urbana. Solidão povoada de seres errantes, órfãos e perdidos, mas sobretudo de rumores e barulho ensurdecedor. A cidade torna-se um deserto estéril, infecundo. Reina uma solidão que insiste em buscar a massa, porque teme ficar a sós com seus anjos e seus demônios. Não se trata da solidão povoada de recordações e lembranças agradáveis, que tira da própria experiência um tesouro de pérolas preciosas e brilhantes. Ao contrário, aqui a memória converte-se em pesadelo, onde desfilam estranhos fantasmas, alguns com nomes e rostos familiares, outros inteiramente anônimos, antagônicos e desconhecidos. Fantasmas como sombras do passado que inibem a ação presente e fecham as portas de um amanhã renovado e recriado.

É bom ter presente, entretanto, que toda crise representa um terreno ambíguo, onde se misturam risos e lágrimas, dores e esperanças. Mistura que a torna igualmente um terreno fértil. A flor mais bela costuma se levantar do chão mais árduo, ou do lixo transformado em adubo. Crise consiste em um sulco na história, oportunidade para semear e fecundar o solo. O problema é que entre a semeadura e a colheita, existe o tempo de maturação, de gestação. Tempo do Espírito Santo e da renovação do carisma, se quisermos. Depois, nem sempre aquele que semeia será o mesmo que haverá de colher, como poderia nos dizer a sabedoria do camponês. Este lança a semente e volta para casa. Repousa e espera o “tempo do Senhor”. Sabe que a natureza se encarregará de fazer germinar a planta. Sua tarefa consiste em manter limpo o terreno, extirpando as ervas daninhas que a circundam. A graça de Deus age através da criatividade e do trabalho humano.

“Sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente”, diz o apóstolo Paulo (Rm 8, 22). Em meio a esta mudança epocal (não época de mudanças, mas mudança de época), os conceitos de “escuro, vazio e solidão”, entrelaçados e combinados, sempre vêm acompanhados das dores de parto. Mas, diferentemente destas últimas, nem sempre quem as padece terá a graça e a alegria de ver a criança, a luz da nova vida que faz tudo recomeçar. Medos, dúvidas e inquietações, entre outros sintomas, fazem parte desse pacote de dores de parto que atualmente marca a geração dos que se sentem responsáveis pelas transformações históricas. Responsáveis, sim, mas nem sempre protagonistas. Somos chamados a descortinar, a debater, a iluminar, a canalizar determinadas intuições e determinadas forças vivas, mas o verdadeiro protagonismo das mudanças vem do chão, do grito dos pobres e excluídos. A partir desse grito, hoje sufocado, silencioso ou silenciado, a graça de Deus abre os horizontes da história às alternativas viáveis. Daí a importância do silêncio e da escuta, no sentido de se manter de ouvido alerta aos “sinais dos tempos” que brotam dos porões e das periferias da sociedade. A pretensão de protagonismo, tanto por parte da Igreja quanto dos Institutos religiosos, significa que, no fundo, não acreditamos na força viva dos marginalizados. É a partir deles, porém, que Jesus lança os alicerces do Reino de Deus.

As mudanças estruturais e necessárias não se erguem a partir dos palácios ou fortalezas. Quem nasce em berço de ouro, tende à manutenção incondicional do status quo, da ordem vigente. É capaz de mudar as aparências e os atuais personagens do poder aparente, mas apenas para perpetuar os privilégios que herdou ou acumulou através da exploração. Somente quem já passou pelos “não lugares”, ou pelas fronteiras, pelas terras de todos e de ninguém, quem muito caminha errante pelas estradas do mundo, quem não possui endereço fixo – sim, somente os pobres, excluídos e forasteiros carregaram no espírito a aspiração de mudar as coisas e as pessoas. Quem não possui bens materiais, está mais aberto às mudanças, pois pouco ou nada tem a perder. Por isso, é capaz de arriscar a própria vida, na perspectiva de uma vida renovada. Está mais apto e pronto para esse grande passo, essa grande aposta, que é jogar tudo sobre o xadrez imprevisto e imprevisível da história.

Entrementes, nesse cenário de trevas, vazio e solidão, ou de caos, as pessoas buscam de forma desesperada razões para a própria existência, o sentido profundo para a vida. Não escapam dessa busca os representantes de nossas congregações e institutos religiosos. Explosões raivosas, euforia incontida, êxtase momentâneo e uma série de outros tipos de patologias, no fundo, não passam de braçadas de náufragos em meio à tempestade. Sem estrelas no céu escuro, sem bússola nas ondas bravias e sem GPS nas estradas incógnitas – cada qual busca uma tábua de salvação. Que são tais tábuas? São as relações artificiais através das redes sociais, são os esplendores dos movimentos religiosos, são os prazeres imediatos, são os produtos da última moda, é o consumo frenético!… Ou então é um rosto amigo, um gesto, uma visita, uma palavra, um olhar, um sorriso, um toque, um abraço, um “bom dia”, um “como vai?”!… Qualquer resquício de chão sólido onde firmar os pés, uma autoridade a serviço da qual depositar o peso da própria liberdade, um ponto de apoio seguro na realidade escorregadia, qualquer fragmento de verdade por mais volátil que seja!… O importante é vencer a incerteza, com a qual existência humana torna-se um fardo insuportável.

Por outro lado, que possuem de seguro e sólido os pais, os professores, os sacerdotes, os pastores e os formadores para oferecer, respectivamente, aos filhos, aos alunos, aos fiéis e aos formandos? Que esperam deles e dos adultos em geral as crianças, os adolescentes e os jovens? Pouco mais que perguntas sem resposta, uma vez que também eles se encontram envolvidos pelo fantasma da dúvida e da incerteza. O que ensinar e o que transmitir às novas gerações, que navegam pelas redes sociais sem rumo e sem horizonte? E que aprender da parte delas, em suas irrequietas inquietações e interrogações? Como, entre umas gerações e outras, desenvolver um encontro, um confronto, um olho-no-olho e um diálogo reciprocamente enriquecedor? Como, sempre à luz dos “sinais dos tempos”, discernir valores e contra valores, separar o joio do trigo, seja em relação àquilo que vem da tradição, seja em relação àquilo que vem da inovação? Como passar a herança dos valores culturais e religiosos, sem cair numa espécie tradicionalismo moralista e que, hoje em dia, se torna cada vez mais indigesto? Como reciclar o patrimônio ético e moral, ou o carisma religioso, que herdamos e devemos legar, adaptando-o aos desafios e ao contexto da pós modernidade? Para usar uma imagem conhecida, como jogar fora a água do banho, poupando a vida e o futuro da criança.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 7 de março de 2019

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