Primeira vítima da tragédia na escola de Suzano

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Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

A primeira vítima da tragédia na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, na grande São Paulo, responde pelo nome de Guilherme Taucci Monteiro. De imediato, é relativamente fácil e objetivamente correto dividir os personagens do massacre em assassinos e vítimas, para não falar da polícia que, como sempre, chegou depois. O mentor e executor dos crimes, de apenas 17 anos, contra alunos, professores, funcionários, familiares e a sociedade em geral. “Bandidos” de um lado da arma, pessoas inocentes e indefesas do outro. Entre ambos, um abismo. Muitas diferenças, sim, mas também muitos fios de ligação.

Será suficiente um olhar mais aguçado para dar-se conta que a realidade social e histórica é bem mais complexa e tortuosa. Súbito emerge uma série de perguntas cujas respostas exigiriam um longo percurso analítico. Em que circunstâncias nasceu, cresceu e viveu a criança, adolescente e jovem Guilherme Monteiro? Que adversidades, fracassos, desilusões e traumas carrega desde o berço? Quem foram e como o aceitaram seu pai e sua mãe, seus parentes mais próximos? E o convívio com a avó? Quem o amamentou e lhe ensinou os primeiros passos e as primeiras palavras? Quem, alguma vez, o terá acariciado, ouvido suas angústias e tentado colocar limites aos seus instintos, desejos e interesses? Na rua e na escola, como foi recebido? Enfim, quantas tensões e conflitos, arranhões e feridas incicatrizáveis exibem seu corpo, seu coração, sua mente e seu espírito?

Depois vem o isolamento obstinado. Sabe-se de sua tendência ao “gueto” urbano, ao mesmo tempo objeto e sujeito de hostilidades frequentes e recíprocas. Poucos amigos, poucas palavras e o menor número de relacionamentos possíveis. Uma pessoa – criança, adolescente, jovem – curvada sobre o próprio umbigo, fechada num ego partilhado apenas por uma ou duas pessoas. E estas últimas, por sua vez, igualmente longe de relações abertos e plurais. Tudo isso compromete o processo saudável de encontro, escuta, confronto e diálogo com outras formas de ver o mundo, com outros valores. Reflete-se um universo onde jamais se cruzam e se interpelam, de um lado, as experiências vividas, de outro, os horizontes alternativos.

Uma visão de mundo tão hermeticamente cerrada em si mesma comporta sérios riscos. Fantasmas que espreitam em cada esquina de quem, pelos mais diversos motivos, caminha só, se sente órfão e vê-se perdido. Primeiramente, uma solidão despovoada de recordações sadias, tende a destampar as cavernas mais ocultas nas vísceras de cada ser humano. Deparamo-nos, então, com sombras e espectros que ultrapassam nossas possibilidades de entender, e menos ainda de controlar e administrar. Semelhantes fantasmas passam a dominar o coração, a vontade e as ações de quem se encontra desprovido e meios para lidar com eles.

Em seguida, nessa solidão desértica, é costume dar primazia aos demônios, e não aos anjos que habitam o íntimo mais recôndito da pessoa. Tropeça com os vermes, sendo incapaz de erguer os olhos para as borboletas. Assustado e estupefato, em lugar de um diálogo simultaneamente humilde e corajoso, prefere o mutismo obsessivo. E aí levanta-se um problema: quem cala diante das ervas daninhas que descobre no terreno interior e selvagem de sua vida, acaba morrendo do veneno que elas destilam. Quem fala ou grita, de uma forma ou de outra, se salva; quem silencia, tende a afogar-se na própria lama, sem dar-se conta que acima dela está a água pura.

Por fim, tal solidão sombria cria muros, não pontes. Ergue barreiras à comunicação livre e aberta, limitando-se a um monólogo com quem pensa do mesmo modo. Abre abismos cada vez mais fundos e intransponíveis com amigos, companheiros, grupos, comunidades. Rechaça o convívio real, concreto, olho-no-olho, pois não tem como controlar os sentimentos e emoções, tanto seus como dos demais. Mantém somente o contato com as redes sociais, onde tem o poder de escolher, selecionar e deletar os indesejáveis. Nesse mundo virtual, fazer amigos, desfazê-los e refazê-los depende unicamente de um toque na tecla do computador. O cotidiano repleto de adversidades, de caretas e de portas fechadas cede o lugar a um poder secreto de ser dono do mundo. O smartphone consiste numa espécie de “varinha mágica” que dá acesso a um poder desmesurado, embriagador.

Mas não é exatamente essa a trajetória de tantas outras crianças, adolescentes, jovens? O sucesso de Harry Potter, de outras séries cinematográficas e dos videogames não reflete o toque poderoso da “varinha mágica”? Posso tudo o que quero: basta clicar. Clicar, navegar, curtir – é a geração dos novos pioneiros desses “mares nunca dantes navegados” (Camões). Geração dos internautas, não raro silenciosos, isolados, solitários e esquecidos por uma indiferença e um desinteresse das gerações que os precederam.

Sem pontes e sem o acesso a outros saberes, o adolescente não tem como construir uma bússola ou âncora que, respectivamente, aponte o rumo do farol, ou solo firme de um porto seguro. O mundo virtual e volátil substitui o terreno onde encontrar uma pedra de apoio para colocar os pés. Sem referências, jogado nesta “modernidade líquida” (Bauman), não é difícil tornar-se náufrago. Náufrago em meio a uma poça de água barrenta criada pelas circunstâncias sociais, econômicas, políticas e culturais. Engendra-se, desse modo, uma vítima. Mas uma vítima que, além da “varinha mágica”, acaba tendo acesso a uma arma de fogo. Fortalecida com esse novo artefato letal, precisa necessariamente fazer outras vítimas, para identificar-se nas ondas bravias da tempestade. Para poder dizer e gritar, alto e bom som: “não, galera, não estou só! Não sou órfão, não estou perdido”!

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 2019

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