Para voar, além de asas, é preciso ter pés

Compartilhe nas redes sociais

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no whatsapp
WhatsApp
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no telegram
Telegram

 

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

São numerosos, repetidos e sempre mais arriscados os voos dos migrantes. “Uma vez que arranquei as raízes da terra pela primeira vez”, dizia um deles, “agora, quanto tenho de voltar ao caminho e retomar a marcha, torna-se mais fácil”. Seria quase matematicamente correto concluir que as frequentes etapas por que passa o migrante o desenraizá e o desterritorializa cada vez mais. Mas as coisas são bem mais complexas quando, em lugar da matemática (ou junto com ela) estão em jogo pessoas e aventuras humanas. Então, desterritorialização e territorialização constituem duas faces da mesma moeda. Se é verdade que o migrante corta raízes, sofre separações, perde contatos e sente na alma a dilaceração dos afetos, também é certo que ele dificilmente levantará voo se não tiver alguma certeza de onde pousar.

Até mesmo o fugitivo, o prófugo e o refugiado, aquele que é obrigado a levantar voo para escapar da violência ou da guerra, a exemplo de quem migra por causa da pobreza, põe-se logo a costurar laços e redes no sentido de encontrar um lugar para efetuar o pouso. Desde o ponto de vista da subjetividade humana, todo processo de mobilidade pressupõe um refúgio seguro, o qual pode encontrar-se na terra de destino, no lugar de origem ou nas etapas do trânsito. O fato é que ninguém mergulha no vazio absoluto sem, de imediato, entrar em comunicação com a “torre de controle”, seja esta última um parente, um amigo, um conhecido – ou uma rede mínima de ajuda. Da mesma forma que uma aeronave em voo está sempre em contato com o sistema de controle de complexo aeroportuário, o migrante raramente se arrisca a deixar o solo sem algumas linhas de conexão que o ajudam durante o percurso.

Por isso é que para voar, além de asas, é preciso ter pés. Ave sem pés, jamais se arriscará em lançar-se no abismo do ar. Aeronave sem trem de pouso em dia, jamais poderá decolar. Com a devida adaptação, o mesmo ocorre com o migrante. Sem pontos de apoio, por mais frágeis e incertos que eles sejam, jamais se lançará em uma aventura. A análise das migrações, mesmo lidando com causas e implicações de caráter social, econômico, político e cultural ou lidando com fluxos e tendências de ordem objetiva, jamais poderá deixar de lado os conhecimentos, os contatos subjetivos, as redes familiares e de parentesco, bem como a capacidade do migrante em apelar para tais meios como bússola para o seu deslocamento. Não raro as forças cegas e férreas, impessoais e quantitativas da economia globalizada, da violência, da pobreza ou da guerra aparecem como mecanismos deterministas. Os migrantes nada mais seriam do que vítimas, marionetes e joguetes de um cenário trágico e irreversível.

Certo, o quadro das relações político-econômicas nacionais e internacionais imprimem sua marca negativa e imprevisível no trajeto do migrante. Mas este último jamais deixará de ser um sujeito de desejos, sonhos, anseios, esperanças e aspirações. E jamais deixará de mobilizar os fios invisíveis de que dispõe como estratégia para orientar positivamente seu percurso. Usará todo seu conhecimento, inteligência e criatividade, todo o peso de sua influência, para traçar a rota e o destino da própria nave, buscando um ponto de pouso o mais seguro possível. Nem sempre isso é possível, é verdade, mas não devemos subestimar sua teimosia e suas tentativas de levar a cabo um projeto pessoal/familiar. Projeto que, nos tropeços, obstáculos e adversidades do caminho, muitas vezes se bate contra as autoridades e mesmo contra as organizações solidários que tentam direcionar o rumo dos movimentos migratórios.

Não custa insistir: quem dispõe de asas para arriscar um voo é porque dispõe igualmente de pés onde aterrissar. Evidentemente, os ventos e turbulências podem desviar o curso da nave, mas é difícil que alguém migre inteiramente à deriva, como errante sem destino. Escutar os migrantes não só como vítimas passivas a serem assistidas, e sim como protagonistas, poderia ajudar na “governança” da mobilidade humana e nas políticas públicas para um novo enraizamento.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 25 de abril de 2019

  
  

Publicações recentes