O perigo do poder no seio da Vida Religiosa Consagrada: Libido Dominandi

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“Onde a justiça é pouca, é um perigo estar com a razão.” (Francisco de Quevedo)

Por Lauro Daros, fms

Em salas de reuniões e em corredores obscuros, detentores inescrupulosos do poder definem quem vai para o céu e quem vai para o inferno; às vezes, por um ato de misericórdia, o que não é comum, só quando convém, concedem o purgatório. Risos satânicos selam decretos de morte, e gargalhadas estrondosas se prolongam enquanto se materializam as tramas. Nos bastidores, quantas vidas dignas sacrificadas e quantos crápulas promovidos!

O prazer doentio pelo poder – a “libido dominandi”, de que falava Santo Agostinho, é a característica da natureza humana que atrai os sociopatas para o poder, pois é assim que eles poderão exercitar sua lascívia de dominar e controlar cada aspecto da vida alheia e definir-lhe o destino.

Ânsia pelo poder é uma das perversidades humanas. Poder e violência andam, correm, voam… lado a lado. Dormem e acordam juntos. Controlar o outro é força, e na demonstração da força revela-se a crueldade e a baixeza do poder.

Algumas características devastadoras do poder:

  • Manipula o ambiente, pessoas e situações para se perpetuar ou se prolongar no poder. Onde há poder, impossível a preparação de sucessores. É angustiante o medo das sombras. Quem ousa brilhar torna-se vítima de invejas e prontamente desestabilizado com fofocas e julgamentos. Pesquisa-se a vida do “intruso” para encontrar fragilidades e imperfeições que possam difamá-lo. Algumas vezes, ironicamente, quando é útil, promove-se para desestabilizar e afastar.

É um perigo exibir talentos.  Pode-se ser visto como possível concorrente e inspirar medo e insegurança. As pessoas precisam se esconder, porque num ambiente de poder, desejar brilhar pode ser o maior erro.

  • Arma uma rede de informações, tem necessidade de saber tudo, em detalhes. Para o poder, conhecer o possível oponente é poderosa arma para destruí-lo. Em encontros, reuniões e outros eventos, faz sondagens, com perguntas indiretas, para conseguir que as pessoas revelem seus pontos fracos e intenções.
  • É adepto do utilitarismo. Seus interesses são prioritários e únicos. A seu bel-prazer, usa pessoas como objetos. Depois, descarta.
  • É prepotente. Vê somente a si mesmo, e tudo deve girar ao seu redor. É um ver-se superficial, sem enxergar-se. Como um náufrago, agarra-se a tábuas, mas ilusórias, por medo de experimentar o abismo interior ou de se descobrir criado a partir do pó.
  • Considera-se insubstituível. Não consegue imaginar a realidade e as pessoas sem ele estar no controle. Sente-se dono das pessoas, do dinheiro e das estruturas, Privilegia estruturas, massacra pessoas.
  • · Precisa transformar em ouro tudo o que toca, como o rei Midas. Seus relacionamentos devem lhe trazer alguma vantagem: material, afetiva, intelectual. Quando concede um favor, o faz com intenções particulares. As pessoas estão sempre lhe devendo favores. Desconhece o dom da gratuidade.
  • É fundamentalista. Supõe-se perfeito e senhor da verdade e se dá o direito de submeter, julgar e condenar. Sente medo e insegurança por não poder controlar tudo e todos. Frusta-se quando nem sempre consegue dominar as consciências das quais se julga proprietário. Não dorme se souber que alguém, em algum lugar, escapou do seu controle.
  • Corrompe. Com segundas intenções, concede privilégios a um determinado grupo que aceita se vender. Assim forma seu curral eleitoral.
  • Procura cercar-se de medíocres, e, às escondidas, faz de tudo para que isso aconteça. Gosta de mentes que podem ser submissas, que sejam pessoas bajuladoras e puxa-sacos.
  • É vingativo. Quem não gira ao seu redor não tem vez, é tratado com indiferença, não recebe oportunidades de crescimento. Além disso, é mentiroso e omite informações. Mente para deixar o outro sem condicões de se defender. E quando diz a verdade, revela somente o que ele quer que as pessoas saibam. Além disso, impõe cursos. As pessoas estudam somente o que ele determina.
  • É paternalista/maternalista. Ameniza a ideia de autoritarismo com a desculpa de estar protegendo e passando bons valores. Superproteção – como excesso de amor e zelo – pode sufocar e impedir voos. Muitas vezes, o poder faz uso de chantagem emocional, com disfarce de bondade, igual à galinha que reúne ao seu redor os pintainhos para protegê-los de gaviões imaginários.
  • Pratica abusos indiscriminadamente (assédio moral, assédio sexual, coerção). Expõe as pessoas em situações desumanas e antiéticas; pratica a tortura mental, com cobranças descabidas e permanentes; lança ao rosto os deveres, sem tocar nos direitos; impõe, pela intimidação ou ameaça, responsabilidades que as pessoas não desejam ou não são aptas para realizar; cria situações insustentáveis para que a pessoa peça demissão; provoca remoções para desestabilizar; compromete a imagem do outro com boatos; pressiona para obter favores sexuais; entre tantos.
  • Pode ser sutil. Deixa a entender que é o grupo quem manda, mas ele controla o grupo. Mantém imagem impecável, fazendo os outros de joguete e bode expiatório. A sutileza também está no uso de gestos honestos para encobrir dezenas de outros desonestos.

Libido Dominandi é patologia. Um vazio profundo inutilmente preenchido pelo prazer do domínio. Um vazio devastador que atrai tudo para si, mas que não o satisfaz; um vazio, ao contrário do útero, que não gera vida, apenas aniquila.

De qualquer forma, todos e todas possuem poderes. Desde o poder de uma pessoa sobre a outra até o poder de uma pessoa sobre milhões ou bilhoes. E se expressa desde controle de horários, chantagem emocional, demagogia, assédio moral, assédio sexual, autoritarismo até armação de guerras. O poder destrói pessoas, famílias, comunidades, escolas, empresas, instituições, nações… e impede o Reino de Deus.

Na Igreja e na Vida Religiosa Consagrada, é comum, pela visão distorcida do voto de obediência, o abuso do poder em nome de Deus. Colocar o ser religioso antes do ser humano vai contra a natureza humana, portanto contra a natureza divina. Uma deturpação fatal contra a Igreja e a VRC. Um abuso atroz contra o ser humano, que é imagem e semelhança de Deus.

O poder na VRC pode infantilizar. O controle sobre os estudos, sobre experiências que o mundo oferece,  sobre o jeito de ser, concepção reducionista dos votos, demagogia, fundamentalismo, etc – impedindo a pessoa de ser ela mesma – pode mantê-la imatura e insegura para começar uma nova vida, caso conclua, após discernimento, com acompanhamento espiritual, que não tem vocação. É insano forjar uma estrutura que aprisiona as pessoas para forçar uma perseverança infeliz. É natureza do poder preocupar-se mais com quantidade do que com qualidade. E não é natureza de Deus escravizar. Deus é totalmente livre, e distribui gentilmente a seus amados e suas amadas a liberdade. A transformação da VRC inicia-se pelo essencial – o cuidado e a promoção do ser humano. Sem seres humanos livres e felizes, não há VRC, não há mística, não há profecia.

O poder na VRC ainda mancha-se de farisaísmo, conceito que se completa com hipocrisia e falsidade. O fariseu impõe nas costas do outro pesos insuportáveis e sem sentido que ele próprio não tem interesse em suportar, pois é falso. Valoriza coisas sem importância – normas, ritos, estruturas – e desvaloriza o essencial – o amor a Deus e às pessoas. É detalhista e esquece o todo. É escravo de si mesmo e não suporta a liberdade alheia. Pensa, inconscientemente: “Eu não sou livre, então ninguém mais será”. A essência do hipócrita é parecer virtuoso, puro, santo sem o preço de ser. Mas impõe tudo aos outros, e se dá o direito e o dever de julgar em nome de Deus, deturpando a essência de Deus, que é amor, compaixão, liberdade. “Não julgueis e não sereis julgados (Mt, 7,11). “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque sois semelhantes ao sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia! (Mt 23, 27-28)

Pela possibilidade de vantagens e privilégios incontáveis, o poder vicia como droga. Mas pessoas de Deus não convêm que se envolvam com a droga do poder. Eis as palavras de Cristo – nosso centro e nossa luz: “Que não seja assim entre vós; mas o que entre vós é o maior, torne-se como o último; e o que governa seja como o servo”.

O poder de Deus não se encontra em terremotos e vendavais, em trevas e sombras; está na harmonia e na suavidade, na luz e na brisa, na poesia e na espiritualidade.

O PODER E O LEITO PROCUSTIANO

            Procusto era um lendário ladrão grego que vivia próximo a Elísios, na Ática. Ele adquiriu o nome de Procusto, o Estirador, porque obrigava suas vítimas a deitarem-se num leito de ferro e cortava-lhes os pés, quando excediam o tamanho deste, ou esticava-os com cordas, quando não o atingiam.

            Após convidar os viajantes a passarem a noite em sua casa, seduzia-os com uma recepção calorosa até altas horas. Depois de vencidos pelo cansaço de tantas homenagens, ele os persuadia a pernoitar em seu quarto de hóspedes, onde estava o famoso “Leito de Procusto”. Como era perfeito o mundo de Procusto, ele anunciava que tudo, neste mundo, devia se adequar às normas. Para ele, as pessoas deviam ficar na medida de seu leito.

            O Leito de Procusto é o símbolo da submissão do espírito a uma medida convencional e limitada.

            Transportando isso para a nossa realidade contemporânea, basta citarmos como exemplo a Inquisição, o nazismo, o consumismo, a padronização do gosto e do comportamento através da mídia, a globalização neoliberal.

            Pode-se também transportar o conceito Leito de Procusto à realidade pessoal. A inflexibilidade é um perigo a ser superado nas relações interpessoais, seja em casa, seja no trabalho. Impor nossas idéias e nosso jeito de ver o mundo às pessoais com as quais convivemos é praticar o Leito de Procusto.

 

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