O eclipse da democracia

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Foto: Nasa

Num misto de perplexidade, revolta e impotência, assistimos a um eclipse bastante generalizado da democracia. Não um recuo oportunista, arbitrário e passageiro de qualquer dos países ditos “subdesenvolvidos”. Ao contrário, trata-se de um avanço de posturas autoritários e retrógradas, reacionárias e obtusas no interior mesmo das democracias historicamente consolidadas. Um retorno sistemático e orquestrado de governos de extrema direita, vestidos com a roupagem do nacionalismo populista. Expressão não apenas do conservadorismo tradicional, no sentido de manter o status quo, mas de um saudosismo infantil e doentio dos regimes de exceção como as ditaduras militares, totalmente avessos à prática democrática.

Eclipse gradual, parcial ou total? A dosagem parece variar caso e caso. No Brasil, por exemplo, que se encontra a meio caminho entre os países centrais e os periféricos – se é que ainda faz sentido falar do grupo BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – o eclipse começa com a tomada de posse do atual governo. Os ataques às instituições e instâncias democráticas tiveram início já com a campanha do candidato a presidente Jair Bolsonaro. Esperava-se que ao entrar nos palácios da Alvorada e do Planalto, o tom adquirisse uma tonalidade mais moderada, em vista da governabilidade. Mas a atitude hostil, belicosa e destemperada em relação às diversas organizações de qualquer sociedade que se diz democrática, só fez recrudescer com a passagem do candidato à função de máximo expoente da República.

Junto com o presidente, vieram os filhos Flávio, Eduardo e Carlos, respectivamente senador, deputado federal e vereador pelo Rio de Janeiro. O país então passou a ser comandado pelo clã Bolsonaro. Tanto pelas redes sociais quanto nas falas improvisadas ou coletivas de imprensa, os destemperos se multiplicaram. O clã em peso, armado de uma verdadeira metralhadora verbal e giratória, cuspia fogo, ofensas e impropérios em todas as direções. Tentava, além disso, mas em vão, reescrever e ressignificar conceitos históricos, há tempos batizados e sacramentados pelos especialistas do assunto, tais como ditadura e golpe militar, tortura, holocausto…

Voltando ao tema do eclipse da democracia, nestes últimos dias caíram todas as máscaras dos Bolsonaro, se é que ainda havia dúvidas quanto à “nova política” (tão velha quanto a tirania pura e simples). A frase é tão estarrecedora que convém passar a palavra ao próprio Eduardo Bolsonaro: “Se a esquerda radicalizar, a resposta pode ser um novo AI 5”. Ignorância, miopia ou autoritarismo? De fato, somente uma ignorância absoluta quanto aos horrores perpetrados pelo Ato Institucional nº 5, instituído no período da ditadura militar, em dezembro de 1968, pelo então presidente Artur da Costa e Silva, poderia justificar semelhante declaração. Tamanha ignorância na pessoa de um deputado federal seria causa de imediato afastamento.

Quando à miopia, vem da sua visão de uma esquerda que estaria se radicalizando. Talvez fosse mais indicado falar de absoluta cegueira. Bastaria um voo rasante pelos movimentos, entidades e organizações de esquerda no Brasil de hoje, para verificar quanto se encontram fragmentadas e apáticas, para não multiplicar os adjetivos. Em termos político-ideológicos, toda e qualquer tipo de radicalização no decorrer do governo Bolsonaro vem de seus próprios integrantes. Tanto é verdade que, em sua animosidade insistente e patológica, não faltarão tiros no pé e frequentes recuos. O próprio Eduardo, após as múltiplas e negativas repercussões negativas de sua frase, impensável e inadmissível em um representante da nação escolhido por via democrática, não teve outra alternativa senão voltar atrás e pedir desculpas.

Resta o autoritarismo. Talvez um desejo reprimido que, a exemplo de um vulcão, vem à tona com toda força devastadora. Desejo de fechar os canais legais por onde a prática democrática circula de forma livre; de destruir os instrumentos criados para que o regime democrático exerça o poder com sensatez e autocontrole entre as diversas instâncias; e de desconstruir os mecanismos que impedem a volta de qualquer tipo de arrogância destemperada.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 1º de novembro de 2019

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