Fome e a obesidade de mãos dadas

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Do ponto de vista histórico e estrutural, o subcontinente latino-americano é reconhecido por profundos desequilíbrios e contradições. A linha divisória entre pobres e ricos passa não apenas pela fronteira dos vários países, mas também por distintas regiões de cada um deles. Em nível brasileiro, podemo-nos reportar à obra do sociólogo francês Roger Bastide, Brasil, terra de contrastes, publicada em 1957. Mais ou menos contemporâneo a ele, o cientista social Josué de Castro, em 1952, lança o livro-denúncia Geografia da fome. Um pouco antes, o sociólogo brasileiro Gilberto Freire havia trazido à luz os clássicos Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mocambos. Injustiça e desigualdade social formam o denominador comum de todos esses estudos.

Nem precisaria acrescentar que a própria literatura regionalista, rica e diversificada, retrata com precisão esse rosto típico brasileiro, fortemente marcado pela injustiça e pela desigualdade social. Basta ter em conta, entre tantas outras, as obras de Graciliano Ramos, como Vidas Secas e São Bernardo; de José Américo, como Bagaceira; de José Lins do Rego, como Fogo Morto; de Jorge Amado, como Seara Vermelha, Terra dos confins e Grabriela, cravo e canela; de João Cabral de Melo Neto, como Morte e vida Severina; de Raquel de Queiroz e Clarice Lispector, respectivamente autoras d’O Quinze e d’A hora da estrela.

Por quê semelhante desfile de autores e obras? Porque recentemente um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, sigla em inglês) alertava para o drama atual de dois opostos extremos e contrastantes: obesidade e subnutrição. Por um lado, milhões de seres humanos ainda sofrem o duro flagelo da pobreza, da miséria e da fome, que mata mais que todas as guerras. O relatório destaca os países subdesenvolvidos e/ou convulsionados por conflitos armados, onde multidões são obrigadas a escapar em massa. Tal flagelo se faz mais flagrante e urgente entre as populações que erram pelas estradas do êxodo – migrantes, refugiados, prófugos, trabalhadores temporários, expatriados – que tentam melhor sorte pressionando as fronteiras entre os países centrais e periféricos.

Por outro lado, o “a doença” da obesidade se alastra por todo o planeta. Embora sua presença seja mais marcante nos países ricos, como não podia deixar de ser, o mal também atinge os países pobres e/ou emergentes. O mais grave é que, não raro, esse mal vem acompanhado do desperdício de toneladas e toneladas de alimentos. Voltando ao território brasileiro, é conhecido e notório que o país constitui uma das sociedades mais desiguais e desequilibradas do globo: concentra simultaneamente riqueza e renda, de um lado, e exclusão social, de outro.

Disso resulta que, paradoxalmente, tanto a subnutrição quanto a obesidade encontram solo propício no território nacional. A pirâmide socioeconômica revela-se cada vez mais acentuada e injusta, privilegiando progressivamente os habitantes do andar superior, ao mesmo tempo que penaliza aqueles do andar inferior. Um exemplo do abismo que separa a elite da população de baixa renda: de acordo com dados do IBGE divulgados em 16/10/2019, no decorrer de 2018, o grupo de 1% da população mais rica aumentou sua renda em mais de 8%, enquanto os 30% mais pobres a reduziram de 3%. A disparidade social alcança seu maior índice.

Em nível internacional e mais abrangente, outros autores e respectivas obras poderiam somar-se aos já citados. Temos, em primeiro lugar, o estudo sobre Modernidade e desigualdades sociais, título de um livro publicado pela Prof. portuguesa Luísa Ferreira da Silva “para servir de base a um curso de ensino à distância” (Cfr. Universidade Aberta, Lisboa, 2008). A autora enriquece seu trabalho ao ampliar o leque de sua análise, destacando em especial as teorias sociais de Max Weber, Anthony Giddens, Norbert Elias, Zigmunt Bauman e Boaventura de Souza Santos. Todas elas denunciam um crescimento viciado pelo acúmulo indevido da riqueza nas mãos de poucos, ao passo que a maioria da população sofre de múltiplas carências. Ao mesmo tempo, anunciam a necessidade de mudanças profundas e estruturais no sistema de produção. Ponto de encontro com o relatório da FAO é a constatação de que as desigualdades tendem a aumentar nos tempos de crise.

Em segundo lugar, cabe recordar ao menos outras duas obras similares, no sentido de chamar a atenção para o fosso que se alarga cada vez mais entre ricos e pobres. Elas põem a nu o mesmo contraste de ordem socioeconômica e hoje generalizado. Ajudam a ilustrar o estridente descompasso entre os avanços da tecnologia e do progresso, com consequente crescimento da produção, por uma parte, numa disparidade flagrante e escandalosa com o desenvolvimento social, por outra. Referimo-nos a Jean-Paul Fitoussi e Pierre Rosanvallon, que em 1997 publicam o livro A era das desigualdades. Um ano antes, em 1996, o economista francês Thomas Piketty, por sua vez, havia publicado a A economia das desigualdades.

Constata-se, portanto, que os estudos sobre o tema são vastos, numerosos e abrangentes. Constituem, ainda, um alerta para o abismo que, entre o pico e a base da pirâmide social e econômica, tende a aprofundar-se sempre mais. Do ponto de vista da Doutrina Social da Igreja (DSI), podemos notar que, desde a Carta Encíclica Rerum Novarum (RN), do Papa Leão XIII em 1891, os princípios fundamentais que orientam a chamada “questão social” primam pela busca da justiça, do direito e de uma maior distribuição dos bens produzidos pelo trabalho humano.

Prova disso haverão de ser, entre outros escritos da DSI, a Constituição Pastoral do Concílio Ecumênico Vaticano II, Gaudium et Spes (GS-1965), seguida pela Carta Encíclica Populorum Progressio (PP-1967). Ambos os documentos – como dois capítulos de uma mesma obra, conduzidos pela mão do Papa Paulo VI – contrapõem o mero crescimento econômico ao “desenvolvimento integral”. Deles decorre a célebre frase do pontífice: “o desenvolvimento é o novo nome da paz”.

O Papa Francisco, por sua vez, desde o início de seu pontificado, vem insistindo sobre o fato de que a economia globalizada “exclui e mata”, chamando a atenção de forma especial para o grande número de “descartáveis” que ela cria e ignora. Entre estes, figuram de modo particular as multidões de sem pátria e sem destino, os “condenados da terra” (título do livro de Frantz Fanon). O pontífice nos alerta e nos convida a superar a “globalização da indiferença” pela “cultura da acolhida, do encontro, do diálogo e da solidariedade”. De resto, o fio condutor da DSI sublinha a defesa dos direitos e a dignidade da pessoa humana, alertando para o bem-estar comum e a solidariedade entre pessoas e povos de todas as raças e nações.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2019

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