Exemplo às avessas

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Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

A abertura dos trabalhos no Senado, na sexta-feira, dia 1º de fevereiro, figura como um exemplo às avessas do que, nos escritos da Doutrina Social da Igreja (DSI), se costuma chamar “política do bem-estar comum”. Em lugar das necessidades básicas e urgentes da população, de modo particular dos estratos mais pobres e desfavorecidos, prevaleceram os interesses pessoais, partidários e corporativos. Na eleição do presidente daquela casa, viu-se de tudo: luta aberta pelas fatias mais suculentas do poder e influência, tumulto e bate-boca, confusão e intervenção camuflada do Planalto, decisão por parte do Supremo Tribunal de realizar o pleito de forma secreta, adiamento da votação para o dia seguinte, tentativa de fraude com o aparecimento de um voto a mais do que o número de votantes – tudo isso escancarou uma prática política de caráter marcadamente oligárquico.

Não é difícil imaginar a surpresa negativa dos senadores eleitos na última eleição, bem como a dos cidadãos que tiveram a paciência de acompanharam os debates do plenário nas sessões de abertura e preparação da escolha do coordenador dos trabalhos. A impressão que fica é a de um Senado desconectado da realidade brasileira, alheio às condições precárias de milhares e milhões de trabalhadores e suas famílias. Vem à tona a imagem de uma nave espacial que, distante e indiferente, navega acima dos simples mortais que rastejam pelo solo. Nem sequer um olhar para a planície, nem mesmo por curiosidade.

Emerge com força a pergunta: para que o povo elegeu suas excelências os senhores senadores? Para que existem a Câmara e o Senado, que formam o Congresso Nacional?  Qual o papel do poder legislativo na democracia? Como ele se integra aos poderes executivo e o judiciário? De que maneira, e uma vez por todas, dar as costas ao corporativismo patrimonialista, em função de um mandato que esteja a serviço dos outros direitos humanos e sociais, em vista de uma administração equitativa? Por que não trabalhar em vista de estabelecer leis que, por exemplo, diminua o desequilíbrio socioeconômico entre o pico e a pirâmide social, uma vez que o Brasil figura entre o país mais desigual do planeta?

Voltando aos princípios fundamentais da DSI, e desde seu documento inaugural, a Rerum Novarum, de 1891, o Estado no seu conjunto tem o dever de regular as rex publica, de tal forma que o bem comum esteja acima dos interesses privados. No quadro de extrema assimetria, injustiça e desigualdade social em que vivemos, as autoridades eleitas de forma democrática devem empenhar-se para encontrar mecanismos de redistribuição de renda, alicerce firme para a justiça e a paz. “O desenvolvimento é o novo nome da paz”, diz claramente o texto da Carta Encíclica Populorum Progressio, de 1967.

Isso exige que o deputado ou senador, como também os juízes e governantes em geral, tenham os olhos voltados para as carências mais gritantes de que sofrem seus eleitores. Ao invés disso, gastam tempo, dinheiro e palavras numa disputa turbulenta, a qual pouco tem a ver com o cotidiano da população de baixa renda. O grande desafio do governo e do Estado brasileiros, hoje como ontem, é justamente esse: desviar o olhar do próprio umbigo, sintonizando-o com a situação dos cidadãos no seu dia-a-dia. A população segue sonhando e buscando, esperando e confiando. Mas o retorno por parte de seus candidatos eleitos, por vezes, é deveras motivo de vergonha para a política (ou politicagem) nacional.

O que se verifica é que, não raro, o elo entre eleitor e candidato se rompe assim que este último ocupa a cadeira do parlamento. Cria-se então uma distância na qual, por um lado, o cidadão volta as costas, deixando ao seu representante a tarefa das mudanças necessárias, e, por outro, o parlamentar isola-se no seu esforço para garantir que seu posto se converta em cadeira cativa, deixando o eleitor abandonado. Daí que, numa eleição que parecia apontar para mudanças, repetem-se os vícios históricos e estruturais de nossa trajetória política.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 05 de fevereiro de 2019

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